Ser ou não ser... Charlie: será esta a questão?

Somos palestinianos e judeus, Charlie e muçulmanos, até que a próxima tragédia nos forneça novos mártires que possamos chorar.

“Eu sou Charlie”, proclamaram nos últimos dias milhões de pessoas nas ruas de cidades um pouco por todo o mundo, assim como na Internet. A este coro de vozes apressou-se a responder um outro anunciando “Eu não sou Charlie.” Ser ou não ser Charlie passou a refletir uma determinada posição política, social e religiosa. Mas o que significa, afinal, identificar-se ou não com Charlie? Será esta a questão central que enfrentamos, no rescaldo dos ataques em Paris?

Vale a pena lembrar aqui quem temos sido e deixado de ser recentemente. Só nos últimos meses, a opinião pública mundial foi palestiniana, sob o fogo do exército israelita, foi Michael Brown, o adolescente negro assassinado pela polícia em Ferguson, EUA, foi polícia, por ocasião dos atentados no Canadá e depois em Nova Iorque, foi australiana, aquando do sequestro em Sydney, e foi, para além de Charlie, judia, depois das mortes no supermercado kosher, e muçulmana, em apoio aos muçulmanos franceses moderados.

A identificação com as mais variadas vítimas sucede-se a uma velocidade crescente. Somos palestinianos e judeus, Charlie e muçulmanos, até que a próxima tragédia nos forneça novos mártires que possamos chorar, nos quais nos reconheceremos ou não, fugazmente, ao ritmo alucinante dos meios de comunicação e da Internet.

Ao “sermos” esta ou aquela pessoa, um ou outro grupo social, partilhamos o sofrimento alheio e exprimimos a nossa solidariedade para com as vítimas. Mas será a identificação, com a sua forte componente emocional, a melhor resposta a estes eventos?

É óbvia a superficialidade deste tipo de identificação passageira, que muda a cada novo ciclo de notícias. Se o nosso acesso quase imediato à informação potencia um estado de permanente efervescência emotiva, o que é certo é que a nossa reação aos múltiplos estímulos a que estamos sujeitos é necessariamente transiente e permanece à flor da pele.

Um outro problema com a identificação é o seu carácter reativo. Quando nos identificamos com alguém, reagimos emocionalmente a um evento e abandonamos a nossa distância crítica, o que significa que, em última análise, sacrificamos a nossa capacidade de pensar.

Este abandono da faculdade de reflexão é notório no debate que se tem vindo a desenrolar em relação à necessidade de ser ou não ser Charlie. Aqueles que “são Charlie” invocam o desejo de defender a liberdade de expressão e condenar a barbárie do terrorismo muçulmano; os que “não são Charlie” consideram como ofensivas as caricaturas do profeta Maomé que figuram frequentemente no Charlie Hebdo.

Bastaria um módico de pensamento crítico para concluir que estas posições, aparentemente irreconciliáveis, estão afinal bastante próximas. Defender a liberdade de expressão não implica apreciar as caricaturas de Maomé ou de qualquer outra figura religiosa, incluindo o papa ou rabinos. Significa, sim, concordar que queremos viver numa sociedade sem censura, na qual temos a possibilidade tanto de praticar livremente a nossa fé, como de caricaturar figuras religiosas e rirmo-nos delas sem receio, se assim o desejarmos.

A polarização social que resulta da identificação cega com um ou outro grupo, com os que são ou com os que não são Charlie, faz-nos perder de vista o essencial. Se, por um lado, é claro que não somos Charlie, já que é pouco provável que alguém concorde a cem por cento com todo o conteúdo de um jornal, por outro lado, certamente somos Charlie na nossa defesa da liberdade de exprimir opiniões diversas na imprensa, incluindo aquelas com as quais não estamos de acordo.

A crítica a uma identificação simplista com determinados grupos de opinião é talvez a mensagem mais profunda da capa da última edição do Charlie Hebdo, onde vemos um choroso profeta Maomé exibindo um cartaz no qual se lê: “Eu sou Charlie.” Estará o profeta realmente arrependido? Será a sua tristeza real, ou chorará ele lágrimas de crocodilo? Ter-se-á a expressão “Eu sou Charlie” tornado tão popular que nem o profeta lhe pode resistir? Será ele sincero, ou resultará a sua identificação da pressão dos meios de comunicação? Quem representa ali Maomé, a comunidade muçulmana, os líderes religiosos, ou todos nós, emocionados com os eventos recentes?

O debate em torno de ser ou não ser Charlie encobre uma questão mais profunda, que os colegas dos cartoonistas assassinados nos quiseram relembrar. Antes de sermos ou não sermos Charlie, afigura-se-nos o dilema shakespeariano do ser ou não ser tout court, ou seja, somos confrontados com um problema existencial, que nos convida a refletir sobre o que significa viver. É este impulso que se perde quando aderimos sem hesitações a causas mediáticas e, abandonando a nossa faculdade de pensar, nos tornamos Charlie ou não Charlie.

Aqueles que foram tocados mais de perto pela tragédia, os cartoonistas do Charlie Hebdo, ofereceram-nos na nova capa do jornal um exemplo de coragem intelectual. Resistindo à onda superficial de identificação ou não com os seus colegas, fizeram-nos rir do que se passou e, na distância criada neste momento cómico, na apreciação dos matizes da piada, abriram espaço para pensarmos sobre o que aconteceu.

Professora na Universidade de Georgetown, EUA

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