Rússia acusa Ucrânia de estar refém da extrema-direita

Governo de transição ucraniano reafirma que não vai abrir mão da Crimeia. Negociações entre Moscovo e Washington vão prosseguir nos próximos dias. Missão da OSCE volta a ser impedida de entrar na península.

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O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, diz que a extrema-direita é "uma minoria decisiva" Sergei Karpukhin/Reuters

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, afirmou neste sábado que a Ucrânia está refém da extrema-direita e acusou os Estados Unidos e a União Europeia de terem quebrado uma promessa de impedirem a entrada de ultranacionalistas no governo de transição.

"O auto-intitulado governo interino [da Ucrânia] não é auto-suficiente e, lamentavelmente, depende de nacionalistas radicais, que protagonizaram o golpe militar", disse o ministro russo, referindo-se aos protestos dos últimos meses que culminaram na deposição do Presidente Viktor Ianukovich.

Esta declaração de Sergei Lavrov serve também como resposta à exigência feita pelos Estados Unidos e pela União Europeia para que as autoridades russas aceitem negociar com as novas autoridades ucranianas, cuja legitimidade é reconhecida por Washington e Bruxelas e contestada por Moscovo.

Depois de os chefes de Estado e de Governo da União Europeia terem chegado a acordo, na quinta-feira, para uma posição conjunta sobre como lidar com o conflito na Ucrânia – que passa por sentar à mesa de negociações russos e ucranianos –, a Rússia afirma que isso não acontecerá enquanto a extrema-direita não for afastada do processo político na Ucrânia.

Mas a definição do que é a extrema-direita radical nacionalista na Ucrânia tem dividido as partes envolvidas neste conflito. Na quinta-feira, o Departamento de Estado norte-americano publicou uma lista com "dez alegações falsas sobre a Ucrânia", que resultam da "ficção do Presidente Putin". No último ponto, o departamento liderado por John Kerry afirma que "os grupos ultranacionalistas da extrema-direita, alguns deles envolvidos nos confrontos abertos com as forças de segurança durante os protestos Euromaidan [contra o Presidente Viktor Ianukovich], não estão representados no Rada [Parlamento ucraniano]".

O governo de transição ucraniano não tem nenhum elemento directamente ligado ao grupo neonazi Sector Direito, mas seis dos ministros são do partido Svoboda (Liberdade), cujo líder, Oleg Tiahnibok, chegou a referir-se à "máfia judaico-russa que domina a Ucrânia", e cujos deputados costumam referir-se aos judeus em termos depreciativos. Mas, ao contrário da generalidade dos partidos europeus de extrema-direita, é favorável à integração do seu país na União Europeia.

Em Dezembro de 2012, na mesma resolução em que considerou as eleições legislativas na Ucrânia (ganhas pelo Partido das Regiões, de Viktor Ianukovich) "um retrocesso em relação a anteriores actos eleitorais", o Parlamento Europeu manifestou a sua "apreensão em relação à escalada de sentimentos nacionalistas na Ucrânia, consubstanciados no apoio ao partido Svoboda", descrito como uma formação "de índole racista, anti-semita e xenófoba", atitudes que "colidem com os princípios e valores fundamentais da União Europeia". Nessa resolução, o Parlamento Europeu apelava "aos partidos pró-democracia com assento no Rada [Parlamento ucraniano] que não se associem a este partido, que não o apoiem e que não formem coligações com o mesmo".

"Sector Direito dita as regras"
Na declaração deste sábado, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros admitiu que a extrema-direita é uma minoria na Ucrânia, mas sublinhou que é "uma minoria decisiva". "Os responsáveis do novo governo pediram ao Sector Direito para aprovar a escolha dos ministros, e agora o Sector Direito está insatisfeito. Os seus líderes afirmam que a mudança do sistema de governo na Ucrânia ainda não está concluída. Estão a exigir que cada um dos ministros explique aos manifestantes da Praça da Independência de que forma estão a implementar as exigências dos líderes dos protestos" que resultaram na queda do anterior governo ucraniano e do Presidente que o nomeara, Viktor Ianukovich.

Para as autoridades russas, "não existe qualquer controlo estatal da ordem pública e o auto-intitulado Sector Direito é que dita as regras, o mesmo grupo que recorreu ao terror e à intimidação".

"Parece-me que os nossos parceiros ocidentais sabem muito bem o que eles [os grupos da extrema-direita] representam, porque há muitas questões a ser levantadas em Kiev e, entre eles, trocam impressões alarmantes. Mas acho que tentam esconder os factos por razões políticas", acusou o ministro russo dos Negócios Estrangeiros.

O Sector Direito é um grupo criado durante os protestos contra o Presidente Viktor Ianukovich, e que liderou os confrontos mais violentos na Praça da Independência, em Kiev. Não escondem a sua ideologia – na porta da sede do partido está pintada uma cruz suásticaO líder do Sector Direito, Dmitro Iarosh, confirmou neste sábado que irá candidatar-se às próximas eleições presidenciais na Ucrânia.

Ucrânia reafirma que não vai abrir mão da Crimeia
Se Moscovo afasta, para já, qualquer hipótese de negociar com o novo governo ucraniano, Kiev não se afasta da sua posição em relação à Crimeia.

"A Crimeia é e será parte do território ucraniano, e nós não iremos ceder a Crimeia a ninguém", afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros do país, Andrii Deshchitsia, numa conferência de imprensa, neste sábado, em Kiev. Quanto ao referendo sobre o futuro da soberania da península, marcado pelo parlamento regional para o próximo domingo, Deshchitsia descreve-o como "ilegítimo" e diz que "não terá qualquer implicação legal para a Crimeia, para a Ucrânia, e para a comunidade internacional".

Uma nova conversa telefónica entre o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, também não trouxe qualquer novidade – Lavrov avisou Kerry que as sanções impostas pelos Estados Unidos podem virar-se contra o próprio país, falando num "efeito bumerangue" resultante de "passos precipitados capazes de causar danos às relações entre a Rússia e os Estados Unidos"; e Kerry disse a Lavrov que o seu objectivo é "encontrar uma forma construtiva de resolver a situação por meios diplomáticos, indo ao encontro dos interesses dos povos ucraniano e russo e da comunidade internacional". Um comunicado do Departamento de Estado norte-americano informa que os dois líderes concordaram em "continuar as conversações ao longo dos próximos dias".

Crimeia volta a barrar entrada à OSCE
Também neste sábado, uma missão da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) voltou a ser impedida de entrar na Crimeia, desta vez depois de terem sido disparados tiros de aviso, segundo o relato da própria organização: "Representantes de Estados da OSCE voltaram para trás no ponto de controlo da Crimeia em Armiansk. Foram disparados tiros de aviso. Todos estão a salvo", lê-se na conta da OSCE no Twitter.

Depois de terem sido impedidos de entrar em outras duas ocasiões nos últimos dias, os representantes da OSCE retiraram-se para Kherson, a maior cidade ucraniana antes da chegada ao istmo que liga a Crimeia ao Sul do restante território da Ucrânia.

A missão está a tentar entrar na península a convite do governo de transição de Kiev, mas Moscovo considera que a organização tem de pedir autorização – ou ser convidada – pelas autoridades separatistas pró-russas da Crimeia.

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