Polónia, democracia, Europa

Jaroslaw Kaczynski interpretou a vitória eleitoral como luz verde para criar uma “nova Polónia” e romper regras básicas do Estado de Direito. A sociedade polaca resiste.

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A Comissão Europeia abriu um inquérito sobre a situação do Estado de Direito na Polónia, o que em limite poderia conduzir a sanções. O governo do partido Lei e Justiça (PiS) foi eleito em Outubro, com maioria absoluta. O seu líder, Jaroslaw Kaczynski, interpretou a vitória como uma luz verde para criar uma "nova Polónia", neutralizar o Tribunal Constitucional, subordinar a Justiça, controlar os media públicos e fazer vergar os privados, desprezando a separação dos poderes. Dispondo da Presidência e da maioria absoluta no Parlamento, tem como desígnio depurar o Estado e controlar todas as instituições. Nacionalista e eurocéptico, Jaroslaw tenta realizar o que ele e o seu falecido gémeo Lech falharam em 2005-2007.

A "tirania da maioria" é a negação do Estado de Direito ou do rule of law anglo-saxónico. "Estão ameaçados os pilares básicos da ainda jovem democracia liberal" polaca, escrevem colunistas. A Polónia não é um caso isolado mas é particularmente grave: é o grande Estado da Europa Central, indispensável membro da NATO, central nas relações com a Rússia e nos equilíbrios da UE. E com grande peso simbólico: é o grande caso de sucesso entre as democracias saídas do bloco comunista em 1989. Enfim, a deriva polaca arrisca-se a consolidar um "bloco iliberal" na Europa Central, abrindo nova fractura no Continente.

Refundar a Polónia
O fenómeno tem um passado, ultrapassa a problemática do autoritarismo e a equiparação à Hungria de Viktor Orbán é simplista.

Em 2005, os gémeos Kaczynski lançaram-se numa espécie de "refundação" da Polónia. Tinham um projecto político, uma base social e um método de acção. A meta era fundar uma "IV República", um "Estado forte" e antiliberal, baseado nos "valores tradicionais polacos" — nação, catolicismo, família. Uma "Polónia europeia" mas em oposição à "Europa laica e apátrida" que ameaçaria a "alma da Polónia" e os seus valores. Exploram uma cultura de vitimização em relação à Alemanha.

A sua base social, antes e agora, assenta naqueles que menos ganharam com as reformas da transição. O PiS ganhou as eleições de 2005 (27% dos votos) com um programa simples — limpeza da corrupção, combate à criminalidade, regeneração moral, justiça social. Lançou depois um programa de "purificação da Polónia", uma "caça às bruxas" que, a pretexto de punir personagens do regime comunista, visava de facto eliminar os rivais da elite católico-liberal e europeísta que fez a transição de 1989.

O PiS, com Lech na Presidência e Jaroslaw no governo, tentou concentrar todos os poderes e acabou por falhar. Rompeu-se a sua coligação com centristas e foi esmagado nas legislativas de 2007.

A vitória de 2015
O PiS venceu as eleições de Outubro, depois de ganhar as presidenciais, por uma razão simples: o governo liberal da Plataforma Cívica (PO), apesar dos bons resultados económicos, estava esgotado e os polacos queriam "mudança". Os jovens estavam descontentes e a "elite" da PO era acusada de "arrogância".

A estratégia de Kaczynski foi eficaz. Fez entrar em cena gente nova, com ar moderno e um discurso moderado. O líder ficou na retaguarda e apresentou como candidata a primeiro-ministro uma mulher, Beata Szydlo. O seu programa económico era aliciante: depois de 25 anos de crescimento económico ininterrupto, chegou a altura de distribuir os frutos aos cidadãos. Prometeu o aumento das prestações sociais, a redução da idade de reforma, medicamentos gratuitos para os idosos, um salário mínimo e menos impostos.

Jacques Rupnik, especialista na Europa Central, assinala que continua a haver "duas Polónias", a do Oeste e das grandes cidades, que muito ganhou com a transformação económica e a adesão europeia, e a do Leste, mais rural e conservadora, que beneficiou menos da transição e onde o PiS tinha a sua maior reserva de votos. Desta vez o PiS venceu também nas grandes cidades, devido ao programa económico "de esquerda" e também como reflexo da crise dos refugiados. Subiu de 32 para 37,5%. A PO desceu, passou de 40 para 24%, perdendo votos para forças novas como o partido Moderno, de Ryzzard Petru, que é hoje o verdadeiro líder da oposição.

Resistência da sociedade
O mais relevante é outra coisa: Kaczynski não anunciou ao que vinha. Não pediu um mandato para fazer uma "nova Polónia". Evitou os temas que lhe pudessem fazer perder votos. Mas logo que obteve a maioria absoluta, o "velho Kaczynski" entrou em acção.

O seu poder tem uma limitação: ficou longe da maioria de dois terços que lhe permitiria rever a Constituição. O seu caso é diferente do da Hungria, onde Orbán obteve os dois terços que lhe permitiram transformar a Constituição e legalizar a concentração do poder na sua pessoa. Hoje, na Hungria, a grande força de oposição a Orbán é a extrema-direita do Jobbik; na Polónia são centristas e liberais. Deixemos de lado outra pesada diferença: Orbán é admirador de Putin e partidário da aproximação a Moscovo; Kaczynski é visceralmente anti-russo. O que ele admira em Orbán é a arte de "blindar" o monopólio do poder.

Como reagem os polacos? Uma sondagem de Novembro indicava que 56% dos inquiridos pensavam que a democracia estava ameaçada. A cota de popularidade de Kaczynski desceu de 42 para 27%. Os analistas estão convencidos de que, salvo surpresa, o PiS, senhor de uma maioria absoluta, não deixará o governo antes de 2019.

A sociedade polaca é forte. Não plebiscitou o autoritarismo de Kaczynski como os húngaros fizeram perante Orbán. O PiS é uma força real mas representa um terço da sociedade.

Para o analista Janusz Bujajski, este governo servirá de teste à democracia polaca. "Ao fim de poucos meses no poder, o apoio ao PiS está a descer, enquanto sobe claramente o apoio à oposição liberal e centrista. Ao tentar reverter a liberalização da sociedade polaca, o PiS está a arriscar a sua própria sobrevivência." As sondagens atribuem aos liberais do Moderno um apoio de 30,9%, contra 27,3 para o PiS. "Quanto mais longe levar a sua agenda, desprezando a oposição e alienando os aliados internacionais, mais provavelmente a economia polaca estagnará e abalará a sua reputação internacional."

O maior diário polaco, Gazeta Wyborcza, de centro-esquerda, é um radical adversário de Kaczynski. Mas também o grande jornal conservador, o Rzeczpospolita, condena a "revolução" constitucional.

Tanto os dirigentes como os media europeus e americanos têm o dever de advertir Kaczynski de que a UE tem regras e que o Estado de Direito é a primeira. Mas avisa o New York Times: "Punir a Polónia através de sanções seria contraproducente e até hipócrita, dada a proliferação de partidos análogos através da Europa." O mesmo diz Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu e ex-primeiro-ministro da Polónia: "As opiniões exageradas podem ser contraproducentes (...) e as críticas das capitais e instituições europeias não devem ser vistas como um ataque à Polónia e aos polacos."

A Polónia não será sancionada, assegura o jornalista polaco Jan Cienski, do diário Politico.eu. Argumenta: a UE tratou o precedente húngaro com moleza; a Polónia é demasiado grande e importante para ser isolada; a NATO precisa da Polónia; a UE pouco pode fazer; sanções produziriam um ressentimento anti-europeu que uniria o país em torno do PiS; e o governo polaco deverá durar até 2019.

Mais do que sanções, Kaczynski teme os polacos. É o que os outros europeus devem perceber.

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