O pior da Europa é o melhor de Marrocos

Desde o final de 2011 que o controlo da imigração em Marrocos é apertado

São vítimas de violência, discriminação, abusos sexuais. Têm medo das cada vez mais sangrentas rusgas policiais, têm medo de ser recambiados para a fronteira e que tudo volte à estaca zero. Desde o início dos anos 2000 que Marrocos se tornou num destino de transição para os imigrantes subsarianos que ambicionam chegar à Europa. Muitos morrem a caminho de Espanha, a tentar cumprir o sonho

Lotange vive num quadrado de dois metros por dois: paredes brancas sujas e descascadas, uma pequena janela, porta directa para um pátio comum. O cheiro é nauseabundo: humidade misturada com falta de limpeza e o suor de quatro corpos que precisam de mais espaço para respirar. "Os africanos são tratados como animais. Nós sofremos, mas sofremos. Precisamos que o mundo nos oiça, precisamos que nos ajudem, estamos aqui completamente esquecidos", diz quase a gritar, em jeito de súplica. Os seus olhos, agora molhados, cravam-se, nunca mais se esquecem: "Não peço dinheiro, peço trabalho, peço uma vida digna, peço que os meus filhos possam comer, brincar, ir à escola como crianças normais."


Com a mulher, Brigite, fugiu à guerra na República Democrática do Congo, é ex-militar e está há três anos em Marrocos. Ou fugia ou morria. Saíram à pressa, a pé, de forma clandestina, sem um destino na cabeça; um filho pela mão, outro ainda no ventre. Levaram um ano a chegar: atravessaram o deserto para evitar a polícia, o segundo filho nasceu na estrada. Agora chamam-lhes ilegais, mas não há pessoas ilegais - apenas actos ilícitos.

Fazem parte dos entre 10 a 20 mil subsarianos que vivem em Marrocos e foi nesta “quase-Europa, quando comparando com os países lá em baixo”, que encontraram paz pela primeira vez. Deixaram a guerra mas têm outras batalhas para travar: sem passaporte não são ninguém e o escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) em Marrocos não lhes concede o estatuto de refugiados; sem este documento não podem requerer qualquer tipo de ajuda monetária; sem dinheiro são obrigados a pedir na rua; se saem de casa, a ameaça de espancamento e recambio para a fronteira está a cada esquina. É um ciclo vicioso que parece não ter fim.


Desde o final de 2011 que o controlo da imigração em Marrocos é apertado. Antes, as rusgas só aconteciam nos dias que precediam grandes eventos ou visitas de Estado importantes. Agora, ocorrem em mais cidades, são mais frequentes, mais violentas. Foram mais de 33 mil os casos de deportações em 2012, segundo o Grupo Antiracista de Acompanhamento e Defesa de Estrangeiros e Migrantes (GADEM).

Nos últimos 15 anos, a União Europeia (UE) não tem escondido as suas intenções de travar a imigração ilegal através de países terceiros. Tornou-se no mais importante parceiro comercial de Marrocos e prometeu, com o programa MEDA (Medidas de Acompanhamento), promover a sua competitividade através do desenvolvimento do sector privado. Com o aumento da população subsariana, grande parte das verbas acabaram aplicadas na tentativa de fazer de Marrocos um “país tampão”: em 2006 deu 67 milhões de euros para as autoridades marroquinas reforçarem a vigilância nas fronteiras, desde então têm sido assinadas várias parcerias de mobilidade, a última em Junho deste ano.

Valeria e Jihno são refugiados da República Democrática do Congo, o ACNUR reconheceu-lhes o estatuto. Mas ser refugiado significa ser tolerado. Nada mais. O medo de ser apanhado pela polícia e deportado é o que separa um imigrante sem papéis de um imigrante com o carimbo válido no passaporte, o visto dentro do prazo, a carta de candidato a asilo ou o estatuto de refugiado.

De resto, sofrem a mesma discriminação, vivem nos mesmos bairros, no mesmo quarto lotado, sem emprego e com o mesmo objectivo: chegar à Europa.

Valéria fugiu porque quando o marido morreu um tio da mãe queria casar-se com ela: “Ele já tinha quatro mulheres, mas eu não queria ser a quinta. Bateu-me com um machado e disse na vila que eu era bruxa. Se ficasse, matavam-me”, conta, entre longas pausas, com a voz a mirrar, o olhar longe. Jihno é ex-combatente, não teve outra opção.

Apresenta-se como cantor e "um grande profissional da dança", acredita que a sua música pode ajudar a trazer a paz: “É preciso parar a guerra no mundo, que exista uma verdadeira paz, sobretudo entre os africanos. É essa a mensagem que quero cantar."

Dos sem papéis aos refugiados, dos que estão no país há anos aos que acabaram de chegar, dos mais esperançados aos resignados na dificuldade, Marrocos é apenas uma ponte de passagem para o destino final: a Europa. Querem ir, mas não a qualquer custo: a maioria não pretende atravessar de forma ilegal, pulando os muros espanhóis, mergulhando nos barcos dos contrabandistas, viajando debaixo de camiões. Só Ali diz estar disposto a tudo. “Quero tentar todas as maneiras que conseguir para chegar à Europa, todas as maneiras”, confessa, acenando lentamente a cabeça, absorto, parece estar a convencer-se a si mesmo.


Ali tem 31 anos, é jornalista, licenciado, foi correspondente da BBC e do Daily Telegraph durante a guerra civil na Costa do Marfim, mas os grandes trabalhos terminaram com o conflito. Tem desejos não muito diferentes dos de outros jovens que querem correr o mundo: experimentar uma nova realidade, conhecer outras pessoas, aprender. “Eu sei que se for para a Europa terei uma boa oportunidade para construir o meu projecto, - um website de desporto. É toda a minha vida”.

O sonho da Europa e de uma vida melhor é muitas vezes o que os segura, o que os faz suportar o dia-a-dia de miséria. Pedir-lhes para prescindir disso é remetê-los para uma vida sem dignidade. Ficar em Marrocos é renderem-se, voltar para trás é assumirem o fracasso.

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