O dever de confidencialidade e a liberdade de expressão

Na Hungria, a liberdade de expressão corre diversos perigos...

A Hungria é um país estruturalmente pesado nos nossos inconscientes. Talvez a “lembrança” do império Austro-Húngaro. Talvez a brutal repressão soviética da revolução de 1956. E, actualmente, apesar de ser um membro da União Europeia e de estar obrigada a respeitar o primado da lei e os direitos humanos, a Hungria continua a ser um motivo de preocupação, um país pesado.

O então deputado europeu Rui Tavares produziu em 2013 um notável relatório sobre a situação dos direitos fundamentais na Hungria em que escalpeliza a deriva autoritária aí vivida, e viu aprovadas diversas medidas de fiscalização da evolução da situação.

Como é natural, um dos watchdogs das liberdades na Europa, o Tribunal Europeu dos Direitos humanos (TEDH), já, por diversas vezes, se teve de pronunciar sobre a violação de direitos e liberdades pelas autoridades húngaras, até porque a independência do poder judicial não está aí garantida.

Desta vez, na passada terça-feira, o TEDH pronunciou-se no caso Matúz c. Hungria, em que estava em causa a liberdade de expressão consagrada no art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Gábor Matúz é um jornalista da televisão estatal húngara, para além de ser o presidente do sindicato dos trabalhadores das empresas públicas de radiodifusão. Como jornalista, tinha a seu cargo um programa cultural O Abrigo Nocturno, onde entrevistava diversas pessoas da vida cultural húngara. No seu contrato de trabalho, constava uma cláusula de confidencialidade profissional em que se obrigava a não revelar nenhuma informação obtida através da sua posição e que pudesse ser prejudicial para a entidade patronal ou para terceiros. Com a nomeação de um novo director cultural de programas, Matúz constatou que se estavam a verificar cortes no seu programa que, no seu entender, constituíam censura e, por isso mesmo, queixou-se ao presidente da televisão, que, pura e simplesmente, não lhe respondeu. Ainda assim, em 6 de Junho de 2003, Matúz queixou-se ao conselho de administração da televisão, referindo que o novo director cultural censurava o seu programa O Abrigo Nocturno, impondo modificações ou mesmo cortes sem o seu acordo. Em 19 de Junho de 2003, apareceu na edição online de um jornal diário uma carta de Matúz e um comunicado da “União Húngara dos Jornalistas Electrónicos” a convidar o conselho de administração a acabar com a censura na televisão.

Finalmente, em 2004, Matúz publicou um livro com o título O Antifascista e o Hungarista – Segredos da Televisão Húngara, em que, capítulo a capítulo, publicava extractos das diversas entrevistas do seu programa que não tinham sido transmitidos por instruções do director de programas. Para além disso, o livro publicava diversos mails onde eram discutidas as instruções dos cortes feitos nas entrevistas e um prefácio em que afirmava que o livro continha prova documental da censura exercida na televisão estatal.

Matúz foi despedido e o seu longo percurso nos tribunais pondo em causa o seu despedimento alegando que os mails publicados tinham sido obtidos na sua qualidade de sindicalista que combatia as tentativas de censura e que o livro também tinha sido publicado nessa qualidade, foi sendo coroado de sucessivos insucessos. Os tribunais deram sempre razão à entidade patronal, confirmando o despedimento de Matúz. Para o Supremo Tribunal, a questão da liberdade de expressão não tinha sequer de ser apreciada no caso: Matúz tinha violado a cláusula de confidencialidade, logo o despedimento era justo.

Matúz queixou-se então ao TEDH da violação da sua liberdade de expressão. O TEDH lembrou os aspectos que devem ser ponderados nos casos em que estão em conflito a liberdade de expressão do empregado e o direito à confidencialidade do empregador: a) o interesse público da informação revelada; b) a autenticidade da informação revelada; c) o prejuízo, no caso de ter existido, para o empregador, da revelação da informação em causa; d) a motivação do empregado ao fazer as revelações; e) se a revelação foi feita publicamente, como última medida, e só depois de o empregado ter tentado dar conhecimento das mesmas aos seus superiores; e, por último, f) a severidade da sanção imposta.

É naturalmente impossível resumir todos os considerandos feitos pelo TEDH sobre cada um destes aspectos no caso concreto, mas certo é que, no final, e por unanimidade, o TEDH declarou que a Hungria não tinha ponderado devidamente os direitos em causa, tendo violado a liberdade de expressão de Matúz, pelo que condenou aquele país a indemnizá-lo em 6440 euros.

As condenações do TEDH não têm grande valor económico, mas têm um enorme valor simbólico, na medida em que reforçam, em cada país, a luta daqueles que defendem os direitos fundamentais contra os abusos estatais, como aconteceu neste caso.

Sugerir correcção
Comentar