Necrópole mediterrânica

As ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado.

A Europa está de novo a fazer contas à vida, engasgada entre o constrangimento real de um imprevisível superpovoamento e o sentimento de culpa de que não se livra, ao olhar as pregas da História da colonização africana.

Em A África Começa mal, René Dumont (ed. D. Quixote) alerta para o primeiro modelo civilizacional (a corrupção mercantil) que os europeus ofereceram aos africanos: no século XVI, os agentes negreiros vendiam armas e álcool aos chefes tribais, corrompendo-os, para que estes lhes oferecessem homens e mulheres a serem integrados no tráfico humano. Foi um bom princípio. Os mapas manipulados em Berlim, em 1885, resultantes do tratado que retalhou África em fatias atribuídas a alguns países europeus, permitiram quebrar as organizações indígenas, eliminaram imensas distinções autóctones e inventaram pátrias onde as não havia. Além disso, impuseram uma lógica civilizacional baseada na “ilusão de que o etnos [europeu] constituía o centro do universo cultural, o núcleo paradigmático de normas, instituições e valores em torno do qual giram, para sua glória, todas as outras culturas como satélites” (Urrutia). Sem darem por isso (exceptuando-se as elites corruptíveis), os africanos ficaram fora do processo histórico de que eles deveriam ser protagonistas como se sabe, apenas na segunda metade do século XX surgiram os movimentos de consciencialização e de libertação dos povos africanos. “Nada está fora de um território ideológico”, enuncia Jorge Urrutia (Leitura do Obscuro, Uma Semiótica de África, Teorema). E não. Acontece que as ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado.

Entretanto, tem-se como seguro que a repatriação dos desesperados que atravessam o Mediterrâneo (fugidos às guerras, à seca, à pobreza e ao banditismo), vítimas de redes mafiosas a quem pagam montantes elevadíssimos por documentação que de nada lhes servirá, deverá ser a única saída possível de um complexo jogo em que tudo está em causa: a inclemência de uma Europa que fecha as portas aos outros (e aos seus); a inflexibilidade dos angariadores de migrantes nos países africanos; a severidade das redes mafiosas que garantem liquidez aos bancos europeus e confortam o BCE; a montagem do circo humanitário, gerador de novos empregos filantrópicos e paliativos (e este é um caso de matéria sensível); a indecência das redes de adopção clandestina, de lenocínio e tráfico de menores.

Os tempos não estão bons para acusar ninguém, de tal modo estão todos os agentes relacionados. Nem as nossas lágrimas conseguem afirmar que não são as de crocodilo. O Frontex faz o que pode (e seria prudente que a agência pudesse ser ainda dotada de mais meios); os centros de refugiados e a ONU actuam como podem e conhecem-se casos de verdadeira abnegação; as organizações religiosas (especialmente católicas) denunciam as situações. Mas neste cenário, nem os românticos (os que teorizam sobre as razões do caos e imputam à Europa o crime global) nem os pessimistas (aqueles que, no fim de contas, pensam como os românticos, mas sem chorar) têm razão. Não é um tempo para razão. É talvez um tempo para aceitar que o mundo é um lugar terrível, mas merecedor de uma pequena tarefa diária.

De resto, é impossível uma leitura do obscuro, sem a sensação de nos enganarmos.

Professor

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