Moçambique: Do Frelimistão à parte incerta

Terra dos pais da nação em Gaza, berço da guerra na Gorongosa e origem do sonho alternativo na Beira – três bastiões dos partidos dominantes em Moçambique, em vésperas das eleições gerais que vão testar 40 anos de governação Frelimo e uma paz alcançada em plena campanha.

Apoiante da Renamo em Maputo
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Apoiante da Renamo em Maputo GIANLUIGI GUERCIA/AFP
Apoiantes da Renamo em Maputo
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Apoiantes da Renamo em Maputo GIANLUIGI GUERCIA/AFP
Apoiante da Frelimo em Maputo
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Apoiante da Frelimo em Maputo GIANLUIGI GUERCIA/AFP
Cartazes da Frelimo em Maputo
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Cartazes da Frelimo em Maputo GIANLUIGI GUERCIA/AFP
Cartazes do MDM em Maputo
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Cartazes do MDM em Maputo GIANLUIGI GUERCIA/AFP

Se quisesse seguir o caminho mais fácil, Miguel Jamisse teria um cartão tão vermelho como as bandeiras que se erguem ao longo de centenas de quilómetros em Gaza, uma faixa monocolor do partido no poder, no sul do Moçambique.

Inhambane não é assim e Maputo muito menos. Mas a província que se encrava entre ambas irrompe como uma manifestação constante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), que na quarta-feira defende em eleições gerais a continuidade de 40 anos de governação do país.

Contra tudo e todos, Jamisse fez subir uma solitária bandeira do MDM (Movimento Democrático de Moçambique) no poeirento mercado de Macia, mesmo ao lado de mais uma do partido adversário. Fundador local daquela força política em ascensão, denuncia uma campanha de perseguição contínua e frequentemente ouve ameaças de que a sua loja de mobílias vai arder. Tal como aconteceu ao interior da sede do partido em Abril passado.

“Fiz essa casa com as minhas próprias mãos. Eu também já fui da Frelimo quando todos éramos Frelimo, mas nunca queimei casas”, declara o líder local, junto do que restou da construção em blocos de cimento, agora revestida com cartazes do candidato presidencial do partido, Daviz Simango, e seu slogan “Moçambique para todos”.

“Quando saímos à rua, perseguem-nos e bloqueiam-nos com os carros, levantam tanto pó que nem se vê mais nada. Obrigam os nossos apoiantes a despir as camisetas do MDM e a vestir as deles e a polícia ainda nos prende arbitrariamente”, descreve o dirigente político, que, antes da campanha esteve detido cinco dias. “Não há condições para eleições aqui.”

A vila de Macia foi um dos palcos de ataques de apoiantes da Frelimo, na terceira de seis semanas da campanha, à caravana eleitoral de Simango, em vários pontos da província, resultando em violentos confrontos entre membros dos dois partidos e posteriores acusações de tentativa de assassínio do líder político.

“Pelo que vi na televisão, quem levou porrada foram os homens da Frelimo e quem levava paus era a oposição”, comenta Samuel Matsinhe, primeiro secretário da Frelimo em Xai-Xai. Embora autorizado a falar apenas sobre o que se passa na capital de Gaza, a ideia de que toda a província é dominada pelo partido no poder “não passa de um mito”.

‘Chapa 100’
A longa avenida que atravessa Xai-Xai cobre-se com cartazes do partido no governo e seu candidato, vendedores informais vestem literalmente Frelimo, à sombra das arcadas dos prédios coloniais e, mais uma vez, a oposição está ausente, por alegada falta de autorização dos donos dos edifícios. “Se os outros não conseguem, problema deles. Há muitos postes e sítios públicos por aí”, observa Matsinhe.

Da sede do partido de Armando Guebuza, colunas potentes lançam para a rua hinos da Frelimo cantados em changana. É lá o ponto de partida e chegada de activistas que promovem Filipe Nyussi, o primeiro candidato presidencial do partido sem origem na elite do sul, de forma “ordeira e pacífica”, garante o primeiro secretário. Mas, para o porta-voz local da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), Bento Mavie, “Gaza é o inferno da democracia”.

“Quem não se identifica com a Frelimo está condenado. Não tem emprego, não tem casa, não tem nada”, declara o ex-professor primário, que diz ter sido afastado há 22 anos do ensino pela sua filiação na oposição. “Quando os meus grupos saem para a campanha estou sempre a perguntar-me o que lhes pode acontecer.”

A sede da Renamo em Xai-Xai situa-se no interior de um bairro residencial, assinalada por bandeiras do partido da perdiz que só os vizinhos conseguem ver. Precisa de obras. As fotos do líder histórico do partido, Afonso Dhlakama, têm décadas e ali a Frelimo ainda é referida como um partido comunista.

A intolerância na província é ainda mais grave nos distritos rurais, miseráveis e isolados, segundo a oposição, que enfrenta dificuldades de recrutamento de membros para as mesas de voto e delegados de candidatura por “medo de represálias”. Em Chibuto, Pedro Pelembe, dirigente local da Renamo, interrompeu a campanha “por causa dos maus-tratos dos homens da Frelimo”. Tanto a sua casa como a sede local do partido foram invadidas por adversários. “Não destruíram nada, foi só para humilhar mesmo.”

Terra natal de Eduardo Mondlane, Samora Machel e Joaquim Chissano, Gaza é mais do que o berço dos pais da nação, é a única província moçambicana onde a oposição nunca elegeu deputados e a vitória da Frelimo permanece certa: “Chapa 100”, como ironizam apoiantes do partido, em alusão ao nome das carrinhas de transporte semipúblico, ou “Frelimistão”, capa do semanário privado Savana, após o desfile de pancadaria à passagem do líder do MDM.

Imprevisível Dhlakama
As eleições gerais em Moçambique decorrem pouco mais de um mês após o silêncio das armas na província de Sofala. Foi algures na Gorongosa que o líder da Renamo se refugiou, a chamada parte incerta, depois de a sua base ter sido atacada, a 21 em Outubro de 2013, pelo exército, às ordens do então ministro da Defesa, Filipe Nyusi, e actual adversário da Frelimo na corrida à sucessão do Presidente Armando Guebuza.

"Foi então que comecei a pensar que os homens políticos podem fazer discursos bonitos, mas por dentro são maus", disse Dhlakama em finais de agosto. Foi naquele dia – “o dia que estava destinado a morrer” – que decidiu intensificar a crise e incendiar a região, numa “luta para salvar milhões de moçambicanos", a partir do mesmo local onde a Renamo em 1977 estabeleceu a sua base central em 16 anos de guerra civil.

Formalmente terminado a 5 de Setembro, o mais recente conflito durou 17 meses e deixou um número desconhecido de mortos e milhares de deslocados. Ao fim de quase 80 rondas de diálogo, Dhlakama abandonou finalmente a parte incerta, assinou a paz com Guebuza, a troco de uma amnistia, uma nova lei eleitoral e progressiva desmilitarização do braço armado do seu partido. Logo a seguir, surgiu na campanha como um furacão, arrastando multidões que o aclamam como “pai”, “herói” e “salvador” do domínio da Frelimo.

“Ele provou ser o único lutador da democracia e merecedor do poder”, considera Ricardo Mbondo, chefe do gabinete eleitoral da Renamo na Gorongosa, garantindo que o recorrente uso das armas do seu partido como argumento político não o penalizará, uma vez que “a população já percebeu que os belicistas e torturadores são os outros”.

O início da campanha, segundo Paulo Majacunene, administrador do distrito da Gorongosa, “esteve bastante perturbado porque a Renamo não deixava que os outros partidos fossem para o interior”. Mas o clima serenou entretanto, “reflectindo a maturidade das forças políticas e a particularidade que a Gorongosa tem de saber perdoar”, comenta por seu lado Tobias Dai, ex-ministro da Defesa e chefe local da brigada central da Frelimo.

As marcas do conflito insistem porém em desafiar memórias, como o cartaz do MDM simulando um boletim de voto gigante, no qual Daviz Simango surge junto dos outros candidatos, simbolizados por armas automáticas. “Nós representamos o voto não belicista”, comenta Daniel Missasse, dirigente local do partido, repetindo uma das principais mensagens do seu líder.

Na quarta-feira, Moçambique testa também a paz de 5 de Setembro. Cerca de seis mil deslocados sabem disso por experiência própria e recusam-se a voltar às suas terras de origem, “porque os militares da Renamo ainda estão na zona”, explica o administrador do distrito.

“Não há garantias”, afirma Rosalina Alface, duplamente deslocada, em 1986 e 2013, e que não esconde o medo de uma terceira guerra caso alguém falte à palavra. “Só depois de votar e da saída dos resultados é que regresso”, garante por seu lado Nharussai Almoço, outro residente do campo de trânsito de Nhataca 2, que se alonga em centenas de tendas militares. Todas elas estão decoradas com a imagem do candidato da Frelimo, apesar de o histórico eleitoral na Gorongosa ser favorável à Renamo.

Na actual campanha, Nyusi foi recebido em apoteose por milhares de pessoas, embora muitas tenham sido transportadas em camiões de regiões próximas. Quanto a Dhlakama, era suposto votar na Gorongosa - onde se recenseou, numa delicada operação em plena guerra - mas o seu partido anunciou na quinta-feira que o fará em Maputo.

“Para onde vai a seguir não é relevante”, afirma António Muchanga, porta-voz de Dhlakama, que, após quatro derrotas eleitorais, prometeu que reconhecerá pela primeira vez os resultados de uma votação em Moçambique. A paz chegou, mas o seu movimento continua armado e o exército conserva uma presença forte na Gorongosa, vigiando os fantasmas da parte incerta mesmo ali ao lado

"Filho indisciplinado"
Uma oração bilingue, em sena e ndau, línguas dominantes na Beira, suplica protecção para a ausência de violência à saída de grupos do MDM para a campanha. Inevitavelmente vão cruzar-se com jovens de todos os partidos, alterados pelo consumo das aguardentes locais “boina vermelha” e “negrita”.

Foi na segunda maior cidade do país que o partido nasceu, quando Afonso Dhlakama se recusou a reencaminhar Daviz Simango como candidato à liderança do município da Beira, em 2008. Mas ele não só ganhou as autárquicas como independente como no ano seguinte fundou o MDM e roubou à Renamo o seu bastião no centro do país. Desde então, elegeu oito deputados para a Assembleia da República em apenas duas províncias e ganhou mais três edilidades, entre as quais Nampula e Quelimane, capitais dos maiores círculos eleitorais moçambicanos.

“Daviz, sou tua afeiçoada”, entoa o grupo de apoiantes, adaptando uma canção religiosa que sugere “fidelidade total” a uma causa à medida de um partido e seu baluarte: “Beira por tradição é nossa, sem competição.”

Na campanha porta-a-porta nos subúrbios e pantanosos bairros de solo preto, nas centenas de bandeiras do MDM que tremulam nos “chapas” e em esquinas estratégicas, o MDM reivindica a liderança da oposição para correr com a Frelimo do poder. Já o fez na cidade, falta o resto do país.

A popularidade do MDM “não se deve apenas ao facto de o partido ser originário de um bastião da oposição, mas à força de vontade da população que o criou, para Moçambique ser um país de inclusão”, afirma José Domingo, do gabinete de candidatura de Simango na Beira.

Antes da campanha, uma sondagem colocava o MDM como segunda força política moçambicana, quebrando a hegemonia dos dois partidos históricos. Mas isso foi antes dos banhos de multidão de Dhlakama e da demonstração de força da máquina da Frelimo em todo o país para eleger Nyusi e preservar o controlo do parlamento.

Para Manuel Severino, porta-voz de campanha da Frelimo na Beira, o crescimento do movimento de Simango, e seu grande acolhimento no eleitorado urbano e jovem, é apenas “um acidente de percurso”. E, segundo, Luís Chitato, presidente da Liga da Juventude da Renamo em Sofala, esse sucesso tem os dias contados, face à “monumental popularidade” do seu líder, que também é apresentado como o único em toda a oposição que pode ganhar.

“A população já entendeu que a Renamo tem o único lutador pela causa de Moçambique e um líder que se compara a Messias. A população já anuncia a nossa vitória”, assegura, eufórico, Luís Chitato, reduzindo à mínima expressão a força do MDM, tratado no seu partido como “o filho indisciplinado”.

Exclusivo PÚBLICO/Agência Lusa

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