“Leopardos” e “ovelhas” no Iraque e na Síria

Como podem os Estados Unidos exercer a sua liderança internacional, incluindo através do uso do poder militar, num momento de recuo no seu envolvimento no mundo?

O filme de Luchino Visconti O Leopardo, inspirado na obra de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, narra o retraimento da aristocracia italiana, a partir da história do declínio da casa do príncipe de Salina, durante o chamado Ressurgimento Italiano, que culminou na unificação de Itália em 1870. Num dos diálogos mais impressivos, Salina diz que os aristocratas como ele eram “os leopardos, os leões”, enquanto aqueles que queriam tomar o seu lugar “serão chacais e ovelhas”. E conclui: “Todos nós - leopardos, chacais e ovelhas - continuaremos a pensar que somos o sal da terra”.

A decisão da administração Obama de agir militarmente contra o chamado Estado Islâmico (IS), em simultâneo nos territórios sob o seu controlo no Iraque e na Síria, reacendeu o debate sobre o retraimento dos EUA. E em muitos aspectos podemos encontrar nas abordagens a essa questão várias semelhanças com a realidade magistralmente contada por Visconti, havendo o lado dos “leopardos”, que se recusa a reconhecer a redução do envolvimento político-militar norte-americano no mundo, ou opta por resistir-lhe, e o lado das “ovelhas”, defensor desse recuo de Washington. No caso concreto da guerra contra o IS, uns vêem na opção de Barack Obama de usar o arsenal de poder da América na região como uma mudança significativa da sua orientação estratégica, outros consideram que ela é uma típica “guerra de retraimento”.

Os últimos têm razão. Obama continua a defender o retraimento do país. Mas isso coloca uma questão essencial: como podem os Estados Unidos exercer a sua liderança internacional, incluindo através do uso do poder militar, num momento de recuo no seu envolvimento no mundo?

O exercício de liderança em retraimento não é novo para os EUA. Depois do desgaste provocado pela guerra do Vietname, a administração Nixon operou uma mudança da sua orientação externa de modo a adaptar o país ao que chamou uma era de limites. Em primeiro lugar, iniciou uma política de détente com a URSS, traduzida numa redução da tensão e num aumento da cooperação entre as superpotências. Em segundo lugar, procurou novos aliados, destacando-se a abertura à China, colocando a mais populosa potência comunista na prática mais do lado de Washington do que de Moscovo. Em terceiro lugar, a “doutrina Nixon” transferiu para os aliados a responsabilidade pela sua própria defesa, podendo estes apenas contar com a ajuda militar ou económica norte-americana, mas não com tropas no terreno.

Mais de 40 anos depois, não obstante as diferenças impostas pelas circunstâncias distintas, Barack Obama voltou a abrir o livro do retraimento e está a aplicá-lo na operação militar no Iraque e na Síria. Sem nunca o assumir publicamente, iniciou na prática uma détente com o Irão, que se tornou uma nação indispensável no Médio Oriente. Não fez novas alianças, mas reforçou as já existentes, tendo construído a mais abrangente coligação desde o 11 de Setembro, contando com mais de 50 países, incluindo as potências árabes sunitas regionais. Transferiu para as tropas iraquianas e para a oposição moderada ao regime sírio a responsabilidade por combaterem no terreno os radicais islâmicos, contando apenas com o apoio aéreo norte-americano, com conselheiros militares (não devendo o número destes ultrapassar os 1600) e com ajuda económica. Em qualquer caso, não haverá boots on the ground.

Claro que é sempre possível fazer uma analogia com o início do envolvimento no Vietname e concluir que os EUA, perante a falta de resultados rápidos no combate ao IS, acabarão por optar por uma escalada que terminará com milhares de tropas no terreno. É praticamente certo que assistiremos a um aumento do envolvimento norte-americano à medida que a situação no terreno se vai agravando e os mais extremistas dos radicais islâmicos vão ganhando posições, não só devido às profundas contradições da aliança construída (talvez baste recordar que, por exemplo, na prática pretende pôr do mesmo lado Irão, Turquia, Arábia Saudita e regime sírio), como também devido à inadequação dos meios envolvidos (pura e simplesmente o poder aéreo não é suficiente para atingir os objectivos definidos). Todavia, pensar que podemos ter uma guerra do tipo do Iraque ou do Afeganistão encerra dois erros. O primeiro consiste em não perceber que a opção de Obama pelo retraimento assenta em razões estruturais: ele acredita que o país está em declínio relativo e que estamos a assistir a uma transição de poder no sistema internacional, com o fim da unipolaridade e a emergência de uma multipolaridade, tendo a América de se adaptar a essa mudança sistémica. O segundo passa por considerar que o retraimento é incompatível com o exercício da liderança internacional e que ele não é a melhor forma de resolver o problema concreto do Iraque e da Síria sem criar outros em qualquer parte do mundo.

Num artigo anterior foi sublinhada a importância dos Estados Unidos voltarem a exercer o poder no sistema internacional. Tal é perfeitamente compatível com a visão de retraimento defendida neste artigo, que, em resumo, assenta em três pilares: détente com as principais potências mundiais e regionais, chamando-as a assumir as suas responsabilidades na manutenção da ordem internacional; prioridade às alianças e ao exercício de poder no quadro de parcerias institucionais; transferência para os aliados de parte da responsabilidade por resolverem os problemas nas respectivas regiões, mas com a América a liderar. Esta orientação estratégica veio para ficar e é a melhor opção disponível dentro das limitações existentes no futuro previsível.

“É preciso que algo mude para que as coisas fiquem na mesma”. Esta célebre frase de O Leopardo, conhecida de todos, pode ter sido repetida demasiadas vezes, mas é provavelmente a ilustração mais feliz das intenções de Obama nesta guerra no Iraque e na Síria contra o Estado Islâmico. Ela não se destina a acabar com o retraimento, mas precisamente a permitir que ele continue a ser a orientação estratégica dos EUA: ela é uma “guerra de retraimento”.

Universidade Nova e IPRI-UNL

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