Julgamento em França ressuscita caso da Arca de Zoé

Seis elementos da ONG respondem por fraude. O caso remonta a 2007 quando tentaram levar crianças do Chade para serem adoptadas em França

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Militares guardam orfanato que serviu de casa temporária das 103 crianças KARIM SAHIB/AFP

Parece uma história de um outro tempo. Ou pelo menos contém elementos de um tempo passado – como o de ter o antigo líder líbio Muammar Khadafi disposto a mediar um processo delicado para as relações entre a França e o Chade quando ainda era Presidente Nicolas Sarkozy, em França, e Idriss Déby estava num terceiro mandato presidencial (hoje está no quarto) contestado pela oposição, no Chade. Na cabeça das vítimas porém continua bem presente.

É um caso que envolve a vida de uma centena de crianças e a confiança quebrada numa organização não governamental (ONG). Transformou-se num diferendo diplomático (que rapidamente se resolveu) e judicial. Começa esta segunda-feira a ser julgado em França, num processo relativo a queixas apresentadas naquele país, já depois de ter sido julgado no Chade em 2007.

O processo ficou conhecido por “Arca de Zoé”, quando 18 dos membros de uma organização não governamental (ONG) francesa com esse nome (16 europeus, dos quais nove franceses, e dois chadianos) foram detidos em Abéché, no Leste do Chade, junto à fronteira com o Darfur, no Sudão, então palco de uma guerra.

Uma equipa desta ONG preparava-se para sair do país com 103 crianças, para serem adoptadas por famílias em França, fazendo crer que eram órfãs do conflito no Darfur. O seu fundador e responsável máximo Éric Breteau contestou todas as acusações, numa longa carta enviada aos media franceses, e disse que queria, com essa operação, “denunciar a passividade da comunidade internacional” relativamente a “uma tragédia que prossegue no silêncio”.

Ele e a sua companheira Émilie Lelouch montaram uma operação que implicou fretar um avião de grandes dimensões. A operação era ilegal e o avião nunca chegou a descolar de Achébé. As crianças tinham sido entregues a chefes de aldeias na fronteira entre o Chade e o Sudão e apresentadas como “órfãos do Darfur”. Mas quase todas tinham pai e mãe e a grande maioria não vinha do conflito do Darfur no Sudão. As autoridades do Chade descartaram qualquer responsabilidade dizendo não estar informadas da intenção de a ONG as levar para França, mas sim da intenção da ONG em construir um orfanato local.


Dois processos paralelos
Desses 18 membros da equipa detidos em Outubro de 2007, seis foram julgados no Chade e os outros libertados e livres de qualquer acusação. E seis (dos quais quatro estão entre os seis condenados no Chade) começam hoje a ser julgados em França. Estão indiciados por tentativa de “exercício ilícito da actividade intermediária para a adopção”, “ajuda para entrada de permanência ilegal de menores estrangeiros” e “dolo” em prejuízo de 358 famílias de acolhimento que apresentaram queixa depois de terem pago à Arca de Zoé para acolherem as crianças.

A ONG terá então recebido vários milhares de euros, escreve o jornal Le Monde. Os seis elementos incorrem numa pena até dez anos de prisão e 750 mil euros de multas. Mas os dois principais responsáveis da ONG Éric Breteau e Émilie Lelouch – e cérebros da operação – não se apresentam no tribunal. Indicaram, por carta, que “não tinham vontade de se explicar” e que “não queriam ser representados pela sua advogada”, cita o jornal francês Le Figaro.  Os dois estarão actualmente a viver na África do Sul, já depois de este jornal lhes ter seguido o rasto em 2009, quando ainda viviam em França e “tentavam fazer-se esquecer” retomando a actividade em serviços de ambulâncias.

Sentam-se, a partir desta segunda-feira, no banco dos réus o operacional da logística Alain Péligat, a jornalista Agnès Pelleran, o médico Philippe van Winkelberg e um membro da ONG que ficara em França, Christophe Letie, para fazer a ligação com as famílias.

 

Compensações sob interrogação
Em 2007, estes dois últimos, além de Éric Breteau, Émilie Lelouch, Nadia Mérimi e Dominique Aubry, foram condenados em N’Djamena, capital do Chade, a uma pena de prisão de oito anos acrescida de trabalhos forçados e do pagamento de uma quantia equivalente a 6,3 milhões de euros de indemnizações.

Na altura, o Presidente Sarkozy considerou a operação ilegal e inaceitável mas insistiu que os responsáveis fossem julgados em França. O Governo de Déby manteve que a justiça tinha de ser feita no Chade.

Foi depois do repatriamento, pedido pela França, que os seis condenados foram agraciados pelo Presidente Déby do Chade em Março de 2008. A questão das indemnizações de mais de seis milhões de euros – desse processo – ficou por resolver.

Uma fonte próxima da presidência do Chade disse à AFP que o Governo francês se tinha comprometido a pagar as indemnizações aos pais das crianças mas que até agora nada tinha sido feito. A França, através da então ministra da Justiça, Rachida Dati, fez passar a ideia de que o Estado francês nada tinha a ver com esse diferendo dos queixosos. Os advogados de defesa dos membros da Arca de Zoé escudaram-se no que disseram ser as falhas do processo no Chade para anunciar que, mesmo que tivessem como pagar, os seus clientes não o fariam.

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