Califado com que gerações de jihadistas sonharam nasceu entre a Síria e o Iraque

ISIS instaura Estado islâmico nos territórios que controla. Organização tem armas e dinheiro para alimentar a guerra, mas é incerto se conseguirá governar zonas conquistadas

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Festejos do ISIS em Raqqa, a sua "capital" na Síria Reuters

O ISIS cumpriu o seu nome. Após três semanas de uma ofensiva relâmpago que desmanchou a frágil unidade iraquiana, o grupo jihadista anunciou a criação de um califado nos territórios que já controla, do norte da Síria ao leste do Iraque. Um Estado islâmico arcaico, que não reconhece fronteiras nem a lei internacional e que tem ambições hegemónicas. Não se sabe se o grupo tem os meios para manter (ou expandir) o terreno que reivindica, mas a inesperada proclamação desafia, de uma só vez, os governos da região e a liderança da Al-Qaeda, de que se dissociou e cujo lugar quer agora ocupar.

“Quaisquer que sejam as opiniões sobre a sua legitimidade, o anúncio da restauração do califado é o acontecimento mais importante do jihadismo internacional desde o 11 de Setembro”, diz à Reuters Charles Lister, analista militar e investigador convidado do Brookings Doha Center, no Qatar, sublinhando que todos os grupos radicais que até agora gravitavam em torno da Al-Qaeda “vão ter de decidir se apoiam e se unem ao ISIS ou se se opõem”.

A declaração feita no domingo não deixa margem para meios termos. “A legalidade de todos os emirados, grupos, Estados e organizações torna-se nula perante a expansão da autoridade do califa e a chegada das suas tropas às áreas que ocupam”, disse um porta-voz do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS) numa gravação difundida pela Internet e com tradução em sete línguas. O califa – termo que historicamente designava o sucessor do profeta Maomé – é Abu Bakr al-Baghdadi, o misterioso e temido líder do grupo ultra-radical, “a quem todos os muçulmanos devem obediência e apoio”.

O anúncio da reconstituição do califado, ambição de gerações de integristas e radicais sunitas, podia ser apenas um golpe de propaganda – a proclamação coincidiu com o início do Ramadão, o mês sagrado para os muçulmanos –, não fosse o grupo ter dado na semana passada um importante passo para o concretizar, ao apoderar-se de postos de controlo na fronteira entre a Síria e o Iraque. O Exército iraquiano diz ter reconquistado parte das posições e outras permanecem nas mãos das tribos locais, mas o grupo detém pelo menos o posto fronteiriço, em Qaim, o que lhe permite ligar a frente de combate no Leste da Síria às cidades e províncias que conquistou no Oeste e Norte do Iraque – o território que agora reivindica para o califado.

Num dos vídeos de propaganda postos a circular na mesma altura da proclamação, vê-se um bulldozer a derrubar as dunas de areia que assinalam a fronteira entre os dois Estados. “Esta não é a última fronteira que vamos derrubar”, ameaça um combatente no vídeo, sugestivamente intitulado O Fim de Sykes-Picot, o acordo entre a França e o Reino Unido para a partilha dos territórios do Império Otomano, no final da I Guerra Mundial, e que deu origem às fronteiras actuais.

“Esta declaração é uma mensagem não apenas ao Iraque e à Síria, mas a toda a região e ao mundo”, reagiu nesta segunda-feira o porta-voz do Exército iraquiano, que concentra agora os seus esforços na reconquista de Tikrit, a cidade natal de Saddam Hussein, 100km a norte de Bagdad. O general Qassim Atta espera, por isso, que os países vizinhos e as potências troquem a prudência por um apoio mais musculado ao Governo iraquiano, acusado por muitos aliados de ter deitado lume na fogueira da rebelião ao perseguir e discriminar a minoria sunita. Em Bagdad estão já aviões caças russos, drones americanos e conselheiros iranianos, mas a contribuição é modesta para um Exército que, mesmo com o apoio das milícias xiitas, tem tido dificuldades em travar a ofensiva dos radicais.

Apesar das reticências, ninguém subestima o inimigo. “Eles estão bem treinados, são muito capazes e têm sistemas de armamento avançado que sabem como usar”, disse ao LA Times Michael Stephens, especialista britânico em segurança e defesa. Na Síria, onde o grupo entrou em 2012, apoderou-se de armas e munições entregues aos rebeldes pela Arábia Saudita e levou-as para Anbar, a grande província sunita no Oeste do Iraque. Um arsenal que engrossou com a ofensiva das últimas semanas – só no Norte do Iraque conquistou as bases de cinco divisões do Exército. “Estamos a falar de armas para 200 mil soldados, tudo fornecido pelos americanos”, disse ao mesmo jornal Jabbar Yawar, responsável pelas forças de segurança curdas. E em Mossul, cidade conquistada num único dia, a 10 de Junho, os rebeldes ficaram com o equivalente a 500 milhões de dólares.

Vários analistas sublinham que o grupo só tem capacidade para manter o território que controla se não ostracizar as tribos e os grupos rebeldes que o apoiam – uma aliança que a proclamação do califado pode abalar – e sublinham que a Baghdadi falta a reputação e as alianças que fizeram do Osama bin Laden um líder venerado pelos jihadistas. “Isto pode soar bem nalguns círculos que sempre sonharam com um califado, mas todos sabemos que o ISIS não é o tipo de entidade que o pode fazer renascer”, disse à Reuters o analista político qatari Abdulkhaleq Abullah, sublinhando que Baghdadi “não tem uma fracção da credibilidade e das credenciais de Bin Laden”.

Charles Lister é mais prudente. Num artigo para a BBC, sublinha que o ISIS é actualmente “o grupo jihadista mais rico do mundo” e desenvolveu uma organização e uma burocracia próprias de um Estado embrionário – em Mossul, tal como na sua “capital”, na cidade síria de Raqqa, impôs de imediato a lei, num comunicado de 16 pontos em que rege o essencial da vida pública. Uma forma de actuação que, apesar da sua brutalidade sem precedentes, tem um forte apelo junto de populações que se sentiam até agora ostracizadas pelos seus governos, e que é muito atractiva para uma geração de jovens muçulmanos radicalizados. Repudiado pela Al-Qaeda, “o ISIS apresenta-se ao mundo com a nova vanguarda do jihadismo. Os seus avanços militares, a sua riqueza sem rival e o seu aparelho de propaganda profissional estão a garantir-lhe o domínio que há muito pretendia”, afirma Lister.

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