Falso alívio

A cada vez que os fascistas se vão aproximando do poder, o alívio é porque eles não ficaram ainda mais próximos.

Quando Jean-Marie Le Pen passou à segunda volta das eleições presidenciais, em 2002, o choque na França republicana foi profundo. Centenas de milhares saíram à rua e acabaram votando massivamente em Chirac porque preferiam “um escroque a um fascista”.

Passada uma década e pouco, a França fica aliviada, não porque os fascistas ficaram em segundo, mas porque Marine Le Pen não ficou em primeiro. O actual chefe de governo, Manuel Valls, emitiu um comunicado celebrando o facto de que “a Frente Nacional não é o primeiro partido de França”, esquecendo convenientemente que o seu partido, o Socialista, é apenas o terceiro.

A cada vez que os fascistas se vão aproximando do poder, o alívio é porque eles não ficaram ainda mais próximos. Mas entre cada momento de alívio, o processo de normalização dos fascistas vai prosseguindo imparável. Há uns anos ainda o pai Le Pen era uma figura grotesca e inapresentável. Hoje a sua filha está nas capas de todas as revistas e os seus émulos em todos os programas de televisão. Por mérito próprio — Marine Le Pen sabe manipular a sociedade e a imprensa como ninguém — mas sobretudo por demérito das outras famílias políticas. Dos socialistas aos verdes, dos comunistas aos radicais de esquerda, ninguém consegue apresentar uma visão alternativa para a França e para a Europa. Hollande, mais do que todos, tem representado o vazio ideológico e de valores. E a política, é sabido, tem horror ao vazio. Tendo a esquerda desperdiçado a única oportunidade que lhe foi dada, neste século, para transformar a política francesa, terá muita sorte se, no futuro, for substituída “apenas” pela direita.

A Frente Nacional pode ter falhado ontem no seu objectivo de ser o primeiro partido de França. Marine Le Pen poderá até falhar no seu objectivo de ser eleita, já nas próximas eleições presidenciais, Presidente da República. Mas está a acertar em cheio na outra parte da estratégia, que é a de forçar a uma amálgama entre esquerda e direita no governo da França.

Se as eleições “departamentais” de ontem, cuja relevância prática é reduzida, levassem como ela deseja a uma legislativas antecipadas, é certo que a direita de Nicolas Sarkozy ganharia o direito a impor o próximo primeiro-ministro, e que este teria de governar a França em “coabitação” com o Presidente Hollande. A partir daí estaria comprovada na prática a fusão entre UMP (de direita) e o PS francês a que Marine Le Pen chama muitas vezes de “UMPS”. E a política francesa passaria definitivamente a ter dois pólos, o consensual no poder, e o contestatário em ascensão.

Este é um quadro que serve aos fascistas. E sim, é de fascistas que se trata. O fascismo não é só a sua caricatura, mas uma doutrina da mobilização nacional que sabe ocultar a sua verdadeira natureza para tirar partido da degradação da política tradicional. E a França sempre teve, de forma subterrânea, um forte solo para as ideias de tipo fascista.

Podem então os comentadores encontrar razões para alívio num resultado não tão bom (quanto esperado) da extrema-direita ou não tão mau (quanto esperado) da esquerda. As grandes tendências estão traçadas e ainda não foram invertidas.

Sugerir correcção
Ler 7 comentários