As eleições que para a Renamo “não existiram” podem baralhar política moçambicana

O Governo e a Renamo mantêm-se de costas voltadas. Falta saber até que ponto a emergência do MDM, partido que acaba de somar uma capital provincial às duas que já dirigia, pode influenciar os dados da equação político-militar de um país que, para alguns, “já está em guerra”.

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O MDM capitalizou o descontentamento e aproveitou a falta de comparência da Renamo Nelson Garrido

Wilson, o jovem taxista, tinha avisado, no caminho para o Centro de Conferências Joaquim Chissano: “Não vai haver reunião”. Os factos acabaram por dar razão à sua descrença, assente na experiência de ver sucessivos encontros entre o Governo e a Renamo serem adiados ou sucederem-se sem resultados. Foi o que aconteceu mais uma vez, na penúltima segunda-feira, em Maputo. E também na última.

O Governo fez o que se esperava. Enviou a sua delegação, chefiada pelo ministro da Agricultura, José Pacheco, esperou cerca de uma hora no centro de conferências, situado frente à praia de Miramar – onde, ao domingo, se joga vólei e noivos se fazem fotografar com o Índico em pano de fundo –, e reafirmou disponibilidade para o diálogo. A Renamo (Resistência Nacional Moçambicana, principal partido da oposição parlamentar, antiga guerrilha) também não surpreendeu. Tinha avisado que só voltaria às negociações com “observadores nacionais e internacionais”. E faltou. Como em vezes anteriores.

“Já é tempo de considerarmos a presença de outros cérebros para nos ajudarem”, justificara o porta-voz, Fernando Mazanga, argumentando com a falta de avanços em seis meses e 24 rondas negociais, iniciadas a pedido do seu partido. Esta semana, a Renamo voltou a insistir na presença de observadores e mediadores internacionais. O Governo da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) tem manifestado disponibilidade para “avaliar” mecanismos de participação de “observadores nacionais”, mas não vê necessidade da presença de estrangeiros. São “assuntos domésticos”, argumenta.

Os dois principais partidos moçambicanos andam, como Wilson percebeu, a falar sozinhos. Mais do que isso, actuam sozinhos, numa perigosa rota de regresso a uma guerra que dilacerou o país, entre 1976 e 1992. O Governo ocupou em Outubro a principal base da Renamo, Satungira, e levou à fuga do líder, Afonso Dhlakama, em paradeiro desconhecido há mês e meio. Os antigos guerrilheiros têm atacado autocarros na Estrada Nacional 1, no Centro. A contabilidade oficial é de seis mortos e 26 feridos em seis semanas. Está semeada a intranquilidade e o medo, quebrado o país ao meio – estrangulando a circulação de pessoas e bens. É um ambiente que leva António Francisco, investigador do Instituto de Estudos Sociais e Económicos, a achar que “Moçambique já está em guerra”. “Continuamos a tentar acreditar que a guerra não vai começar, a minha questão é quando ela vai acabar.”

As negociações para “encurtar as diferenças” sobre assuntos como a legislação e os órgãos eleitorais, que a oposição considera favorecerem a Frelimo, não tiveram quaisquer resultados e a Renamo boicotou as autárquicas de 20 de Novembro. O antigo grupo rebelde, que chegou a ter cinco municípios, não presidia no último mandato a nenhum. Cumpriu a promessa de “não andar aos tiros” no dia das eleições, mas viu nos incidentes pré e pós-eleitorais, na Beira e em Quelimane, e nas denúncias de irregularidades em inúmeros lugares, a confirmação da razão do seu boicote. “Para nós, as eleições não existiram”, disseram ao PÚBLICO diversos militantes da Renamo. Acontece que elas existiram e podem mexer com o futuro político do país.

Um partido sem passado
Marcadas por um boicote só claramente perceptível em algumas zonas bem identificadas, como na província de Nampula, as eleições deram ao partido no poder a esperada vitória, permitindo-lhe conservar a maioria dos municípios: 50, segundo os resultados preliminares. Mas várias autarquias foram ganhas pela Frelimo por margem estreita e não é o único vencedor. O outro é o MDM (Movimento Democrático de Moçambique), que irrompeu no plano autárquico.

Se se olhar apenas para o número de presidências autárquicas, nem mudou grande coisa. A Frelimo só perdeu uma, a da cidade de Nampula, capital do Norte, onde, no passado domingo, na repetição do escrutínio anulado a 20 de Novembro – pela ausência do nome e da fotografia de uma candidata dos boletins –, o triunfo de Mahamudo Amurane deu ao MDM o seu terceiro município. O partido reforçou as maiorias que já tinha, na Beira e em Quelimane, e perdeu em alguns casos por diferenças mínimas. Em Maputo e na sua cidade-satélite, Matola, tradicionais bastiões da Frelimo, onde a antiga guerrilha nunca teve votações expressivas, obteve cerca de 40% da votação.

Liderado por Daviz Simango, um ex-Renamo, presidente da Câmara da Beira, o MDM contesta o processo eleitoral em pelo menos 11 dos 53 municípios, onde acusa o partido no poder de ter adulterado os resultados com a cumplicidade dos órgãos eleitorais. Na capital, o candidato Venâncio Mondlane denunciou “gravíssimos ilícitos”. Também a imprensa não poupou nas críticas à Frelimo. Em editorial, o semanário independente Savana insurgiu-se contra “o desvio de urnas contendo boletins de voto para a contagem em locais não especificados na Lei Eleitoral, e a detenção de delegados de lista ou de candidatura, em pleno exercício das suas legítimas funções”. E fez eco da “generalizada percepção de que os órgãos de administração eleitoral ou são, na melhor das hipóteses, impotentes em conter o domínio total a que são sujeitos pelo partido no poder, ou, no pior dos casos, aceitam ser coniventes com este”.

Partido sem passado, fundado em 2009, o MDM conseguiu significativas representações em muitas assembleias municipais: capitalizou o descontentamento, aproveitou a falta de comparência do partido de Dhlakama e mostrou capacidade de mobilização de eleitores jovens e urbanos, que o terão visto como uma alternativa aos dois tradicionais competidores políticos: os outrora “comunistas” da Frelimo e os antigos “bandidos armados” da Renamo, em cujas críticas à partidarização do Estado muitos moçambicanos se revêem.

Desafios à Frelimo e à Renamo
O processo eleitoral não permite análises definitivas no plano político, desde logo porque muitos moçambicanos ficaram à margem da eleição. A instalação de autarquias tem sido gradual – desta vez as votações realizaram-se em 53 municípios, há cinco anos decorreram em 43 – o que faz com que, observa António Francisco “só um terço do eleitorado com direito a votar”, pouco mais de três milhões de pessoas, tenha podido escolher os seus representantes. A emergência do MDM relança, em todo o caso, a discussão política e pode interferir nas negociações.

A Frelimo, que recebeu um aviso dos eleitores – a somar a outros sinais de descontentamento, como as inéditas manifestações de Outubro em várias cidades, em que foi pedida acção do Estado contra a insegurança –, terá em breve de escolher o candidato à sucessão de Armando Guebuza. O Presidente desmentiu há poucas semanas as intenções que lhe eram atribuídas de se preparar para contornar o impedimento legal de se apresentar às eleições de Outubro de 2014 para tentar um terceiro mandato. O facto de a Frelimo não ter tido uma vitória tão convincente como esperaria pode condicionar a sua margem de manobra para influenciar a sucessão e a escolha do próximo candidato à chefia do Estado. “Vamos analisar todo o processo autárquico e projectar o futuro, sempre com o horizonte na vitória”, comentou, na ressaca eleitoral, num tom esperado, o porta-voz do partido, Damião José.

No partido que governa Moçambique desde a independência, em 1975, os resultados eleitorais poderão ter o efeito de refrear a linha dura, defensora de mão forte contra os antigos rebeldes, mas o contrário também pode acontecer, afirma Joseph Hanlon, académico e jornalista radicado no Reino Unido, que há 35 anos acompanha Moçambique e acompanhou as eleições. “Os duros vão dizer que é preciso mais força, outros dirão: ‘esta linha não nos dá apoio’”.

A Renamo reagiu aos resultados eleitorais como “expressão de vingança [contra] o regime do dia”. Disse-o secretário-geral, Manuel Bissopo, quando, há pouco menos de duas semanas, reapareceu em Maputo, depois de ter andado fugido com Dhlakama, na sequência do ataque do Exército ao quartel-general do partido. A expressiva votação no MDM levará necessariamente a uma reflexão do principal partido da oposição sobre vantagens e desvantagens de estar presente no jogo político e sobre o risco de diminuição da sua influência.

Passadas as eleições, os olhares voltam-se de novo para o tabuleiro negocial. “Agora, que o nervosismo eleitoral se encontra ultrapassado, parecem estar criadas a condições para que as delegações do Governo e da Renamo se sentem de novo à mesa das negociações, e que desta vez o diálogo seja mais sincero, construtivo e produtivo”, escreveu o Savana. Uma notícia do diário MediaFax confirmou que Moçambique está sob os olhares externos: o antigo subsecretário norte-americano para os assuntos africanos, Chester Crocker, esteve em Maputo para “dissuadir [o Presidente] Armando Guebuza e o Governo moçambicano para não recorrer à via militar como forma de resolver a actual tensão”, escreveu.

Mas como sair de um modelo negocial com uma “agenda rígida”, que já provou não se traduzir em efectivo “diálogo político”? Passaram meses desde o primeiro encontro e não se passou do primeiro ponto – a reclamação da Renamo de paridade com a Frelimo nos órgãos eleitorais. Para Joseph Hanlon, autor de vários livros sobre o país, o diálogo deve ser feito com as partes a sentarem-se à mesa “sem uma agenda rígida, com mediadores em que ambos tenham confiança”, como, por exemplo, um “conselho de igrejas cristãs ou outra organização não-governamental aceite pelos dois lados”. “Vai ser preciso fazer primeiro negociações informais para resolver os problemas criados pela tomada de Satungira, e depois negociações informais para criar condições para negociações entre os dois”, afirma.

Quer Armando Guebuza quer Afonso Dhlakama têm a ganhar com o diálogo que ainda não avançou, porque “ambos são maus negociadores”, considera o académico e jornalista. Ao primeiro, interessaria mostrar que “é o pai do país e vai fazer pela paz – para os moçambicanos, na família, o pai resolve os problemas”. O segundo ganharia credibilidade se reforçasse o “antigo estatuto de negociador da paz”.

A força com que nas autárquicas irrompeu uma “nova força de oposição, maior do que a Frelimo esperava, e que não é a Renamo”, coloca desafios às que têm sido as duas grandes forças políticas do país, considera Hanlon. “Vai ser mais difícil dizer que a Renamo precisa de mais representação [nos órgãos eleitorais]. É mais fácil dizer que o MDM precisa de mais representação”, diz. Quanto à Frelimo, “precisa realmente que a Renamo esteja nas eleições do próximo ano para dividir a oposição”, considera. Jeremias Langa, jornalista que conduz programas de debate político na televisão privada STV, tem a mesma opinião: “A Frelimo não se pode permitir que o MDM vá sozinho a eleições” e, por isso, ao partido no poder interessa, “mais do que nunca, chegar a um entendimento com a Renamo”.

Marcados por uma guerra ainda bem presente, quando se lhes fala sobre as ameaças à paz, os moçambicanos pobres, vendedores, agricultores, funcionários, percebem mal os jogos políticos. Já compreenderam – ainda que não o digam dessa forma, mesmo que nunca as tenham lido – as palavras que Mia Couto escreveu no romance Terra Sonâmbula: “A guerra é uma cobra que os usa os nossos próprios dentes para nos morder”. Queriam mesmo era que os políticos também o entendessem.

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