Raptos em Moçambique: “Já não é só a máfia, são os oportunistas”

Longe de terem acabado, os raptos inspiraram variantes de extorsão. O perigo permanece, mas a vida continua. E os miúdos parecem já ter integrado o fenómeno nas brincadeiras.

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Nélson Garrido

O que depois aconteceu tem dado razão a Adamgi e à comunidade islâmica de Maputo. Quando os raptos começaram, disseram ao Governo que não era um problema só de alguns, só deles, moçambicanos prósperos, os primeiros alvos. Mais de dois anos passados, o fenómeno não só não desapareceu como parece ter assumido novas formas: aos sequestros soma-se a ameaça telefónica como modo de extorsão.

“Alertámos várias vezes o Governo de que isto não era só para alguns. A prova é que estão a levar outras pessoas, hindus, cristãos, brancos. Já não é só a máfia, são os oportunistas”, diz Adamgi Ionnos Vali, vice-presidente, nas instalações da comunidade, perto do campo de futebol do Ferroviário e do terminal de onde partem para a África do Sul os chapas, populares carrinhas de transporte. “Quando saímos de casa, estamos sujeitos a surgir um rapto.” Na maioria dos casos, os alvos dos sequestradores “foram membros da nossa comunidade”, confirma.

Depois de um alarmante pico em Setembro e Outubro, quando terão chegado a ser dezenas, os raptos pareceram ter abrandado – as notícias eram de condenações a penas de prisão, não de novos sequestros. Mas duas situações ocorridas há duas semanas em Maputo, a de um português – de 22 anos, raptado à porta da loja da família na Avenida Samora Machel, a escassas centenas de metros do Conselho Municipal, numa zona central, à vista de todos – e de uma vietnamita, mostraram que o problema permanece. Numa contabilidade incompleta, por não considerar ainda os casos mais recentes, o ministro do Interior, Alberto Mondlane, quantificou esta semana em 64 o número de sequestros entre Julho de 2011 e Setembro de 2013.

O caso da Samora Machel confirmou que muitos dos portugueses de Moçambique, para cima de 20 mil, são também, em muitos casos, moçambicanos. Já depois de as autoridades de Lisboa terem confirmado a nacionalidade, o porta-voz do comando-geral da polícia, Pedro Cossa, mantinha que, “na participação feita, os familiares dizem que é moçambicano”, embora admitisse “dupla nacionalidade”.

Como de costume, não se conhecem exigências. Consulado e polícia mantêm o silêncio. Neste, como nos outros casos, há declarações em off, rumores, pouco mais do que ideias soltas: o último sequestrado terá nascido em Portugal “há muitos anos”, a onda de sequestros “não é, de todo, contra portugueses em concreto”. Quem foi vítima também não quer falar sobre a traumatizante experiência. Que deixa marcas nas pessoas. E na cidade. Maputo mantém uma aparência de normalidade. Nas zonas centrais, nos bairros periféricos, nas praias da Costa do Sol, a que, ao domingo, afluem muitos moçambicanos.

Afinal, a capital moçambicana já antes dos raptos tinha uma criminalidade que não acaba nos sequestros. Aparentemente igual, Maputo está diferente – diz quem a conhece. Mesmo que os efeitos da insegurança não possam ser medidos, os taxistas, os vendedores de rua, os empregados de restaurantes e hotéis, já radiografaram: quebra do movimento e das vendas, devido ao menor afluxo de turistas.

Se, no início, os alvos eram “os indianos”, forma imprecisa com que popularmente são designados moçambicanos de origem asiática, islâmicos ou hindus, depois o fenómeno alastrou a outros grupos sociais ou étnicos, incluindo, já este ano, a elite negra. Deixou de ser apenas um problema “dos outros”. Mais recentemente, outro dado novo: os montantes pedidos nada têm, em muitos casos, a ver com os milhões dos primeiros tempos. Em situações recentes, não divulgadas pelas famílias, por medo de represálias ou desconfiança da polícia, foram exigidos 30 mil meticais num caso de que o PÚBLICO teve conhecimento, 50 mil noutro (50 mil meticais são cerca de 1250 euros). Como diz Adamgi, não serão já as redes organizadas, mas “os oportunistas”. E todos têm motivos para apreensão. “Qualquer pessoa que tem um filho na escola fica muito preocupada”, confirma Fernando Lima, jornalista e administrador do semanário Savana.

“Sei onde a tua esposa trabalha”
Para além dos raptos, tornou-se comum nos últimos tempos a ameaça telefónica como forma de extorsão. O escritor Mia Couto, que sofreu essa forma de pressão, já o tinha denunciado. O porta-voz da polícia confirma-o: “[Dizem:] Se o senhor não depositar na minha conta montante X até às tantas horas, eu sei onde a tua esposa trabalha e, à hora da saída, o senhor não vai ter a tua esposa. Eu sei que o teu filho estuda na escola assim assim… Não me obriguem a sujar as minhas mãos com o teu sangue”.

Ainda que ligados, raptos e ameaças telefónicas parecem não se misturar, correndo paralelamente, como explica um conhecedor dos casos que envolveram portugueses, que pede o anonimato: “As pessoas raptadas nunca antes foram ameaçadas, as pessoas ameaçadas não foram raptadas”.

O “novo fenómeno” de ameaças telefónicas levou à detenção de “perto de uma dezena” de pessoas, “umas na cidade de Tete, outras em Xai-Xai, algumas aqui em Maputo”, revelou há dias Pedro Cossa, num encontro com a imprensa. “Não cedam a nenhuma pressão desta natureza, participem que foram contactados, denunciem”, apelou.

Mas o pedido esbarra na desconfiança com que a polícia é encarada. Em Maputo, quase toda a gente tem histórias de pequena extorsão de que foi vítima por agentes: o pedido de “refresco”, pequeno suborno, associado a uma “agressividade crescente” dos “cinzentinhos”, os polícias da cidade. No caso dos raptos, são mais do que histórias: os tribunais condenaram agentes, e vítimas garantiram ter reconhecido raptores ao entrarem na esquadra para apresentar queixa.

Na sua maneira de dizer que não se pode tomar a parte pelo todo, o porta-voz vinca que “nunca se deixou de acreditar numa determinada polícia porque o cidadão A ou B que é agente da polícia está envolvido num crime”. Os portugueses já tiveram situações dessas. Não vamos deixar de acreditar nos nossos colegas da GNR e da PSP só por causa de dois ou três casos. A maioria serve o Estado”.

Não parece ser essa a percepção de sectores alargados da sociedade. Um elemento da comunidade de expatriados portugueses, que pede para não ser identificado, diz que “há a percepção de que a polícia não é capaz de resolver o problema, que é parte do problema”. Adamgi Ionnos Vali faz eco de um sentimento que, à boca pequena, muitos subscrevem em Maputo: “Há pessoas graúdas envolvidas, a solução não é pegar o peixe miúdo”. Sinal desse descontentamento e desconfiança foram as manifestações de rua em que, no final de Outubro, nalgumas das principais cidades do país, milhares de pessoas saíram à rua, juntando o seu grito de revolta ao de Kulssum Ismael, mãe de Ahmad Abdul Rachid, adolescente de 13 anos raptado e assassinado na Beira. Nos inéditos protestos confluíram expressões de preocupação com a insegurança e a ameaça de guerra e críticas à passividade da polícia e do Estado.

“Nem abstrair nem meter a cabeça na areia”
Conversas com moçambicanos e portugueses, quase sempre sob anonimato, confirmam um padrão na alteração de comportamentos: menos saídas nocturnas – ainda que quase todos os raptos sejam feitos à luz do dia – menos deslocações, mais cuidados com a segurança pessoal, com as instalações nos bairros de elite, maior regularidade das comunicações com os mais próximos. “Não se pode manter a mesma rotina, alteraram-se itinerários, alteraram-se horários de trabalho. Não são só os raptos, são os assaltos constantes. Não são só as rotinas, há famílias que saíram e empresas que fecharam”, confirma Adamgi.

Ao contrário do que acontece na escola portuguesa, que segue o calendário de Portugal, e está no primeiro período lectivo, aqui, na Escola Mahometana, não se vêem alunos. As aulas seguem o calendário moçambicano e já chegaram ao fim. Também aqui se procura que o quotidiano seja tão normal quanto possível. Luso-moçambicano, o vice-presidente da comunidade islâmica com o pelouro da educação explica um pouco da história e da actividade iniciada em 1935 e apressa-se para uma reunião. Vai reunir-se com os professores para preparar o próximo ano lectivo. A vida continua, para lá dos raptos e da insegurança.

À entrada da Escola Portuguesa de Maputo, na zona de Miramar, no final de mais um dia de aulas, percebem-se pequenas alterações nas práticas. É certo que nada de grave aconteceu no interior, onde circulam tranquilamente alunos com o obrigatório uniforme de blusa branca e calção ou saia azul. Foi lá fora, perto do edifício amarelo-torrado, que, em Outubro, uma mulher foi sequestrada depois de deixar o filho de quatro anos. Pela mesma altura, um aluno foi raptado, numa zona central da capital moçambicana. O alarme soou. “Reforçámos as regras de segurança, fizemos palestras a lembrar aos alunos cuidados que devem ter, há mais exigência na identificação”, explica a directora, Dina Trigo de Mira. Há agora mais rigor no controlo de quem entra e sai. Mesmo aos encarregados de educação passou a ser pedida identificação.

Atarefada com os preparativos de inauguração de uma exposição colectiva de artes plásticas no átrio principal, daí a pouco, e já a pensar na entrega de prémios aos melhores alunos, que há-de ser feita dias depois, Dina Mira conclui que é preciso olhar para diante: “Não podemos abstrairmo-nos nem meter a cabeça na areia, temos de estar atentos e a vida continua”, diz a responsável da escola, um “bocadinho do mundo” – mais de 1700 alunos de 18 nacionalidades – que sofreu os efeitos da insegurança: cerca de 40 alunos saíram desde o início do ano lectivo, em Setembro, alguns dos quais terão regressado a Portugal.

Os raptos tornaram-se assunto a que ninguém, mesmo ninguém, é alheio, como atesta um episódio contado pela directora da escola. “Vou-te raptar”, brincavam, há dias, entre si, alunos do quinto ou sexto ano. Coisas de miúdos? Inocência? Falta de consciência do perigo? Exorcização do medo? E que dizer então de conversas entre adultos que também se podem ouvir em Maputo: “Sim, cá estou à espera de ser raptado a qualquer momento”.

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