Afegãos escolhem sucessor de Karzai, fraude e violência são únicas certezas

Há três candidatos favoritos e nenhum vencedor anunciado. Ninguém pede já eleições livres e justas, mas um escrutínio que permita manter o país longe do espectro da guerra civil

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Percorrendo quilómetros a pé, arriscando demasiadas vezes a própria vida e sem garantias de que o seu voto será contado, os afegãos vão neste sábado às urnas para escolher entre oito candidatos o sucessor de Hamid Karzai, naquela que (pelo menos formalmente) será a primeira transição democrática na história do Afeganistão. Com as tropas da NATO de partida, quase tudo no futuro mais próximo do Afeganistão depende destas presidenciais, mas se algo está garantido à partida é que este será um processo demorado, recheado de fraudes e desestabilizador.

“A questão não é realmente saber se haverá fraude, mas quão grande será, se vai beneficiar mais um dos lados e que consequências políticas terá”, sentencia Martine van Biljert, directora da Afghan Analysts Network, numa série de artigos publicados dias antes das presidenciais, para as quais não há um vencedor anunciado, mas três candidatos favoritos: Abullah Abdullah, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e candidato derrotado nas últimas presidenciais; Ashraf Ghani, ex-ministro das Finanças, que trabalhou no Banco Mundial antes de regressar ao Afeganistão; e Zalmai Rassoul, médico pessoal do último rei afegão e que foi até há pouco tempo conselheiro para a segurança nacional de Karzai.

Biljert detalha a tarefa dantesca que espera a Comissão Eleitoral Independente, responsável pela votação num país onde não há um registo eleitoral ou sequer um censo da população. Calcula-se que haja 12 milhões de eleitores, mas desde 2004 foram distribuídos 21 milhões de cartões. Nas zonas rurais mais conservadoras, os cartões das mulheres não têm fotografia e os registos são muitas vezes feitos pelo chefe de família. Mais tarde, são também eles que votam por elas. Os cartões de eleitor vendem-se às claras e “são tratados como uma espécie de moeda”, que os caciques usam como prova da sua influência e instrumento para encher as urnas de votos falsos, explica Van Biljert. A enormidade do país e as deficientes comunicações, o analfabetismo e a hierarquia tribal da sociedade, a corrupção e a debilidade das instituições ajudam a explicar o resto.

Foi assim em todas as eleições na última década, mas em nenhuma tão flagrante como na reeleição de Karzai, em 2009, e o caos das semanas seguintes leva os observadores a baixar as expectativas para estas presidenciais. Já ninguém pede eleições “livres e justas”, mas “transparentes e inclusivas” – jargão para um resultado que seja aceitável para as principais etnias afegãs, sem fraudes maciças que retirem legitimidade ao vencedor aos olhos dos afegãos e dos doadores internacionais. É isso que vai garantir que as torneiras da ajuda internacional não secam, permitindo continuar a pagar aos soldados e aos funcionários do Governo. Sem isso, o espectro da guerra civil reacende-se.

Fraude intrínseca
“O que é importante é manter a máquina em andamento”, diz ao PÚBLICO Candace Rondeaux, ex-correspondente do Washington Post em Cabul e até há poucos meses analista sénior do International Crisis Group no Afeganistão, lamentando o pouco interesse da comunidade internacional em deixar no Afeganistão uma democracia funcional. “Não há nada que impeça a fraude, porque a fraude é intrínseca ao sistema”, afirma, explicando que dada a ausência de partidos políticos fortes e a pouca influência dos candidatos sobre a estrutura de poder “a única forma de ganhar a votação é encher as urnas de votos”. “Quando os candidatos dizem que a fraude é inaceitável, isso não é necessariamente verdade, porque no final de contas todos querem ganhar”.

A violência prometida pelos taliban – que nas últimas semanas provaram as ameaças, atacando edifícios da comissão eleitoral, hotéis onde se hospedavam estrangeiros e esquadras de polícia – é outra das sombras que paira sobre as eleições. Por causa dela, 10% das mesas de voto não vão abrir, a maioria dos observadores internacionais abandonou o país e milhares de afegãos, sobretudo nas zonas rurais do Sul e Leste, não se atreverão a ir votar.

A Reuters escreveu que Kandahar, a grande cidade do Sul que há séculos domina a política afegã, amanheceu sexta-feira deserta, com as ruas atravancadas de barreiras policiais. “Tudo vai depender da segurança durante o dia”, disse o governador Toryalai Wesa, explicando que se os rebeldes conseguirem impedir a votação na cidade dificilmente as tribos locais vão reconhecer o vencedor das eleições.

Mas apesar da violência e das fraudes anunciadas, as cidades afegãs vibraram nas últimas semanas com a campanha eleitoral – uma sondagem indicava que três em cada quatro eleitores estavam a pensar votar e muitos esperaram horas nas filas para o recenseamento eleitoral. As autoridades apostam o sucesso das eleições numa participação superior aos 40% registados nas últimas presidenciais, por muito que a ausência de cadernos eleitorais torne a definição de uma taxa de abstenção num exercício de quase adivinhação.

Corrida a três
Desta vez, ao contrário de 2009, Karzai não está na corrida e, surpreendendo os críticos, não fez campanha por nenhum dos candidatos. Ainda assim, Rassoul é visto como o favorito do Presidente cessante desde que o seu irmão mais novo, Abdul Qayum, desistiu da corrida em seu favor. O apoio implícito do clã Karzai (e das tribos leais de Kandahar) catapultou para a ribalta este médico discreto, um dos poucos a sair do Governo sem a mancha da corrupção, e levou os rivais a acusá-lo de estar a ser favorecido.

Abdullah, que algumas sondagens colocam na frente das intenções de voto, repete que só uma fraude maciça lhe roubará novamente a vitória. Contra si tem o facto de não ser visto como pashtun (o seu pai pertencia à maior etnia do país, mas a mãe era tajique e foi no Norte que construiu a sua carreira), o que no caso de uma segunda volta inviabilizará a sua vitória.

O terceiro vértice deste triângulo é Ghani,  o mais pró-ocidental dos três e o preferido dos eleitores mais jovens e urbanos. Chocou muita gente ao convidar para vice-presidente o general Abdul Rashid Dostum, o brutal líder uzbeque acusado de inúmeros crimes de guerra, mas a aliança garantiu-lhe que terá uma votação de peso no Norte do país.

Aconteça o que acontecer neste sábado, avisa Martine van Biljert, “ninguém vai vencer ou perder no dia das eleições, mas no processo que se segue”. Contar os votos, enviá-los para Cabul, voltar a escrutiná-los e avaliar as queixas de fraude é uma maratona que se arrastará por semanas – a comissão eleitoral não prevê divulgar os resultados provisórios antes de 24 de Abril e, a ser necessária, a segunda volta acontecerá a 28 de Maio.

Tempo mais do que necessário para as facções rivais trocarem acusações, manipularem a comissão eleitoral e forçarem a anulação de votos disputados. “Poderemos ter pela frente meses de luta política muito intensa e será extremamente perigoso se algum dos candidatos chegar ao cargo sem um consenso claro”, diz Candace Rondeaux. Contudo, “quantos mais adiamentos, mais violência haverá” e se, até ao Outono não houver um vencedor claro, “é todo o sistema de governação que fica em risco.”

Um prognóstico que leva Graeme Smith, perito do International Crisis Group ouvido pela AFP, a garantir que, em última análise, “a legitimidade destas eleições está nas mãos dos derrotados”. “A maneira como eles reagirem aos resultados determinará o impacto desta eleição na estabilidade do país”.

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