Karzai, o aliado incómodo que vai continuar perto do palácio presidencial

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Karzai chegou ao poder em 2001 Ahmad Masood/Reuters

Desde 1901 que o poder no Afeganistão não passa de mãos sem violência – o último século foi feito de guerras e assassínios, numa voragem que manteve o país preso ao passado. Por isso, até os críticos mais ferozes reconhecem mérito a Hamid Karzai, que, cumprindo a Constituição que ele ajudou a desenhar, se prepara para deixar a presidência. Mas após 12 anos no poder, não se espera que este sobrevivente político se resigne a uma reforma antecipada.

“Esta é a primeira vez na história do Afeganistão que um Presidente será substituído de forma democrática e por vontade do povo, e ele será aquele que permitiu que isso acontecesse”, disse Hedayat Arsala, um dos oito candidatos à sua sucessão. “O legado mais importante de Karzai será uma transferência de poder bem-sucedida para o novo Presidente”, acrescentou, mais contido, James Cunningham, último de vários embaixadores americanos que lidaram de perto com o homem que os EUA catapultaram para o poder após derrubar os taliban. Elogios com a premissa de que a eleição não redunda num caos – um cenário que, na pior hipótese, pode levar Karzai a declarar o estado de emergência e a ficar em funções por tempo indeterminado. Mas a ênfase dada à saída de cena é também uma medida da frustração com que os afegãos e parceiros internacionais olham para os seus dois mandatos.

Muita água (leia-se, polémicas e incidentes) correu desde que, em Dezembro de 2001, este aristocrata da tribo popalzai, educado na Índia, formado para a política no movimento mujahedin e apoiado pela CIA, foi aclamado Presidente interino do Afeganistão na conferência de Bona. “O ambiente na altura era muito positivo. Ele era o tipo certo, ponderado, conhecedor, bom a nível internacional”, recordou ao jornal Guardian um antigo responsável da Administração de George W. Bush.

O fascínio – Karzai chegou a ser descrito como um dos homens mais elegantes do mundo, com o seu chapan, o casaco longo que invariavelmente usa, e o chapéu de lã de ovelha – ainda resistia em 2004, quando venceu as primeiras eleições democráticas do Afeganistão. Mas começou a desmoronar-se pouco depois, com estrangeiros e afegãos desiludidos com um governo minado pela corrupção, refém dos senhores da guerra e incapaz de travar o reaparecimento dos taliban. Na imprensa estrangeira surgiram relatos sobre o temperamento “paranóico”, “irascível” do Presidente e até a sugestão de que era dependente de medicamentos.

Karzai, por seu lado, começou a morder a mão que o alimentava: criticou a arrogância dos aliados e enfureceu-se com a morte de civis em ataques aéreos, acusando os EUA de estarem a lutar contra os taliban nas aldeias afegãs e não no Paquistão, onde os rebeldes têm as suas bases. “Os afegãos estão a morrer numa guerra que não é a sua”, disse numa entrevista recente ao Washington Post.

Se as presidenciais de 2009, manchadas por fraudes, foram o ponto de viragem nas relações com os EUA (o ex-secretário da Defesa Robert Gates contou que a diplomacia americana tentou impedir a sua reeleição), a ruptura concretizou-se em Novembro de 2013, quando o Karzai se recusou a assinar o acordo bilateral de segurança sem o qual os EUA ameaçam retirar todos os soldados do Afeganistão.

Num artigo para a revista Foreign Policy, o antigo enviado especial da ONU Kai Eide desmonta a argumentação de que a culpa é apenas de Karzai, recordando que tanto a Administração Bush como o Presidente Barack Obama mantiveram Cabul à margem de decisões estratégicas, quebraram promessas feitas e, em fim de mandato, fizeram-lhe sucessivos ultimatos para assinar o acordo bilateral. “Karzai é um líder experiente de um país soberano que merece respeito”, e já não o novato que em 2001 regressou ao Afeganistão com a protecção das forças especiais americanas, diz Eide.

Mas nem os fracassos internos nem a animosidade externa minaram a influência do Presidente, que, contra todas as previsões, sai da presidência mais forte do que entrou. “Karzai não é apenas um indivíduo, ele representa fortes interesses tribais e uma complexa coligação de power-brokers [decisores]”, disse ao Guardian Graeme Smith, analista do Internacional Crisis Group, prevendo que a sombra do Presidente se estenda ao seu sucessor. Dos três principais candidatos, apenas Abdullah, seu principal rival em 2009, faz um balanço crítico do seu legado, e nenhum exclui a hipótese de lhe reservar um papel na futura administração. “Ele tem imensas capacidades. O facto de estarmos a falar dele dias antes das eleições é um tributo à sua habilidade política”, diz Ashraf Ghani. O ainda Presidente assegura que planeia uma reforma tranquila, com tempo para viajar e dedicar à família, mas para que não restem dúvidas de que se manterá perto do poder, vai viver numa casa que mandou renovar paredes meias com o palácio presidencial.

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