A revisão constitucional europeia

A questão da imigração reforça ainda mais esta urgência constituinte ou reconstituinte.

1. Ao contrário do que muitos pensam, a resposta europeia à impropriamente chamada crise das dívidas soberanas – e que parecia obedecer à muito citada divisa too little, too late – tinha, por detrás de si, um desígnio político e constitucional. E que não era um desígnio malévolo nem maquiavélico de aumentar o sofrimento dos povos sob ajustamento ou de fazer acrescer o poder dos países ricos do Norte e, nomeadamente, a hegemonia alemã.

O pressuposto dessa resposta e de todas as políticas em que ela se materializou era antes o de que a reacção dos mercados criara uma enorme desconfiança entre os Estados os governos europeus. Na verdade, o desabamento do castelo de cartas subsequente à chamada crise do subprime havia mostrado à saciedade as sérias debilidades do euro enquanto moeda. E bem pior do que a crise de confiança entre Estados, havia transmitido essa desconfiança às opiniões públicas e aos povos de cada país, gerando um falta de fé e de credibilidade mútua de enormes proporções. Ora, é sabido que as construções federais – ou aquelas que delas são cópias imperfeitas – vivem de um princípio absolutamente imprescindível: o princípio da confiança federal (aquilo a que os alemães expressivamente chamam Bundestreue). Desfeita ou posta em causa essa confiança, todo o processo negocial de barganha e vaivém em que consiste a construção europeia ficou em xeque.

2. Foi precisamente este contexto político – e até constitucional – que, à mistura com as pragmáticas preocupações eleitorais de todos os protagonistas nacionais, partidários ou pessoais, motivou a estratégia entretanto adoptada. A ideia principal foi a de que os países, já em processo de segmentação e até de fragmentação financeira dentro de um quadro de moeda única, criassem condições para restaurar a confiança mútua, a credibilidade recíproca. Por isso, muitos daqueles que, por vezes, invocam, com carga negativa, que certos objectivos dos programas iniciais de ajustamento foram sucessivamente adaptados não compreendem a natureza política do processo que estava em curso. Estava em jogo, mais do que uma recuperação definitiva e um encolhimento milagroso e automático das dívidas, a criação de um clima e de um ambiente de retorno da confiança entre Estados e Governos. Clima e ambiente de credibilidade que, a pouco e pouco, pudesse contagiar as respectivas opiniões públicas e os eleitorados e que, mais para a frente, pudesse solucionar de um modo mais expedito e porventura salomónico o problema do acumulado da dívida dos países mais frágeis. O essencial, o decisivo, o verdadeiramente importante era transmitir sinais aos parceiros europeus, aos seus eleitorados, aos credores e aos mercados de que havia uma compromisso e uma determinação claramente inabaláveis em não voltar às políticas de passado. Se esta reconstrução lenta e gradual da confiança política e económico-financeira fosse bem-sucedida, decerto, mais para a frente (e talvez mais brevemente do que se julgava), havia de se encontrar uma solução de “suavização” da dívida passada. Entretanto, e por mais de que uma vez, foi necessário acorrer a vários focos de incêndio, marcados por eventos políticos internos ou por decisões ou omissões europeias ou do FMI, que pareciam pôr em risco esse lento germinar da confiança.

3. Dentro de quem se revia nesta estratégia – muito marcada ao sabor do livre devir dos acontecimentos –, os ventos corriam de feição até Dezembro de 2014, até à crise política grega que entregou o cavalo do poder ao Syriza. Mesmo a Grécia, de longe o mais preocupante dos casos, dava sinais de suscitar a tão ansiada confiança, fosse pelos dados orçamentais, fosse pelos dados do crescimento, fosse pela tendência de descida do desemprego. Com a Irlanda e a Espanha a salvo, Portugal no bom caminho e com grande folga de respiração em caso de turbulência financeira nos mercados, e até Chipre a reagir positivamente, a Grécia juntava-se finalmente a uma tendência que permitia perfazer o cenário dos adeptos – certos ou errados – da política do too little, too late. É evidente que esse novo ambiente só fora possível pela criação de novos instrumentos de governação da zona euro – matéria a que se dedicaram amplamente a Comissão, o Conselho e o Parlamento nos últimos anos – e também pela acção determinada do Banco Central Europeu e do seu líder Mario Draghi. Importa, aliás, quebrar aqui o mito – que aparece sempre lesto nas vozes dos dirigentes do PS, em especial daqueles que, pelo menos na retórica, estão cada vez mais perto do BE – de que todos os sucessos alcançados (e na mediada em o sejam) se devem ao BCE. Nem isso é verdade objectivamente, nem essa corrente percebeu ainda que o BCE só tem vindo a avançar com políticas mais e mais “activistas” à medida que justamente se vai gerando maior confiança na zona euro. O processo foi por isso o inverso: o BCE só avançou para a garantia solene da defesa da integridade da moeda e só inaugurou o programa de quantitative easing quando sentiu, na sua avaliação, que os Estados mais problemáticos estavam no trilho correcto e isso desmentia os “críticos internos” que, no BCE, se opunham ao “activismo” do banco central.

4. Foi precisamente porque a questão grega alterou esta via de solução – boa ou má, santificada ou diabolizada – que, na passada semana, falei aqui na entrada de um período de transição constitucional. Ele está mais evidenciado do que nunca no plano Hollande, que, apesar de absurdo e condenado ao fracasso, não tem outra intenção senão a de, lançando a divergência e o debate, inaugurar a revisão da constituição europeia. A questão da imigração, tendo chegado ao Reino Unido com o mesmo dramatismo com que batia nos rochedos da costa italiana, reforça ainda mais esta urgência constituinte ou reconstituinte. O risco será o de sempre: ficarmos eternamente presos nos equívocos institucionais.

 

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