A Europa Cosmopolita

A Europa Cosmopolita representa uma Europa autocrítica, fazendo a crítica institucional dela própria, de que se destacam as duas maiores barbaridades da civilização ocidental: o colonialismo e o Holocausto.

Aquando da morte de Ulrich Beck, em 1 de Janeiro de 2015, foram publicados vários escritos, neste jornal e noutros, entre os quais o Jornal de Letras, onde o seu autor confessou ter encontrado o filósofo pessoalmente na Alemanha, referindo-se ao seu ensaio mais conhecido Merkiavelli e ao tema da sociedade de risco.

Mas em nenhum foi referida a que para mim é uma das suas obras mais importantes, Das Kosmopolitiche Europa, "A Europa Cosmopolita", traduzida em inglês, francês e castelhano. Datada de 2004 e escrita em colaboração com o seu colega Edgar Grande em dois capítulos, de um total de oito, constitui um dos melhores estudos actuais que conheço sobre a construção europeia. Descobria-a na biblioteca central da Universidade Livre de Bruxelas quando em 2008 regressei àquela cidade e ao Instituto de Estudos Europeus como investigador-visitante para fazer pesquisa sobre o tema "Europa Potência Civil", que constituiria o centro da minha tese de doutoramento em Relações Internacionais, defendida na Universidade Nova de Lisboa em Fevereiro de 2012, com o título Europa Política Comum de Segurança e Defesa ou Potência Civil? 

É nesta obra que Ulrich Beck fala da urgência de uma nova narrativa para a Europa e da necessidade de se combater os nacionalismos e as suas visões unilaterais e sectárias do passado histórico. Vi referido na imprensa recentemente um colóquio sobre uma nova narrativa europeia organizado pela actual direcção da representação em Portugal da Comissão, dirigido aos jovens com o intuito de os atrair aos ideais europeus. Como não fui convidado, não estive presente, mas também não vi nos relatos sobre o colóquio qualquer referência a Ulrich Beck, pelo que julgo que não se deve ter ido muito além do habitual anedotário nacional.

Na minha tese, publicada em livro pela Cascais Editora/PRINCIPIA em Outubro de 2012, (que me fez o favor de se esquecer da obrigação de proceder à distribuição e comercialização do livro com um mínimo de profissionalismo, o que resultou na colocação e venda de apenas 200 exemplares, de um total de 500, tendo eu ficado no fim com 300 em casa), faço um desenvolvimento dos principais pontos da obra de Beck numa dezena de páginas, a que acrescento outras tantas sobre o cosmopolitismo de Jean-Marc Ferry, filósofo francês que foi meu professor na Universidade Livre de Bruxelas em 1990/91 e que já esteve várias vezes em Portugal. Sobre este último, há uma variante desse estudo no meu working paper n.º 12, de Junho de 2012, que pode ser lido no site do Observatório Político.

Ulrich Beck utiliza a teoria da modernidade reflexiva para mostrar a necessidade de os Estados e os povos reflectirem sobre o seu passado histórico e as consequências que tem no presente, reinventando-o, se possível. É o caso da relação conflituosa de centenas de anos entre a França e a Alemanha, do conflito entre Israel e os palestinianos e, entre outros, da relação entre as antigas potências coloniais e os povos colonizados, de que é exemplo o caso português. Inspirado em Jürgen Habermas, que em 1990 escrevera sobre o patriotismo constitucional: “Esta identidade política rompe com um passado centrado sobre a história nacional. O conteúdo universalista de uma forma de patriotismo que se cristaliza em volta do Estado democrático constitucional não deve mais ser ligado às continuidades vitoriosas”, Beck é contra a exaltação nacionalista e, assim como Ferry, afirma-se contra o Estado federal. Critica o que chama “nacionalismo metodológico", ou seja, o avaliar da construção europeia apenas do ponto de vista do Estado-nação, o que se ganha e o que se perde. Jean-Marc Ferry, com uma teoria muito semelhante à de Beck, explica talvez melhor a alternativa ao federalismo, referindo que neste se trata na prática da criação de um novo Estado numa integração vertical, a que os Estados federados devem obediência, o que se poderia dizer já acontecer, com a Alemanha a determinar o destino e as políticas da União e de um país singular como a Grécia.

Ao invés, a Europa Cosmopolita pratica uma integração horizontal em que as particularidades de cada nação são levadas em conta, considerando a alteridade, ou seja, o tratamento do outro não como adversário ou inimigo mas como parceiro de uma comunidade de interesses. (Aqui também se poderia considerar incorrecto o comportamento da Grécia no pedido de responsabilidades à Alemanha aquando da ocupação do seu território durante a Segunda Guerra Mundial, mas não tanto se se tratar apenas da exigência do reembolso e pagamento de um empréstimo forçado do qual, ao que parece, estão em posse de documentos de responsabilização passados pelos alemães.) O cosmopolitismo não é determinado territorialmente, daí não haver fronteiras para a Europa, mas sim valores, que são os da justiça, da liberdade, da solidariedade, ultrapassando a dualidade entre o local e o global, o nacional e o internacional. O que é estrangeiro não é vivido como uma ameaça mas como um enriquecimento. E, condenando já na altura a deriva neoliberal, Ulrich Beck afirma: “A Europa Cosmopolita não poderá viver sem a Europa nacional, não pode aboli-la, mas cosmopolizá-la do interior.” Um processo a que chama europeização. Para este autor, o cosmopolitismo europeu institucionalizado nasceu no Tribunal de Nuremberga em 1945, onde pela primeira vez foi ultrapassada a soberania nacional e se criou o conceito de crime contra a humanidade para definir o genocídio contra o povo judeu. E acrescenta: as tradições do colonialismo, do nacionalismo, da perseguição e do genocídio são todas de origem europeia, mas também o são as categorias jurídicas que condenaram esses actos como crimes contra a humanidade. É assim que a Europa Cosmopolita representa uma Europa autocrítica, fazendo a crítica institucional dela própria, de que se destacam as duas maiores barbaridades da civilização ocidental: o colonialismo e o Holocausto. E por fim pergunta se é isso que a distingue dos Estados Unidos e das sociedades islâmicas, não desenvolvendo no entanto a questão. O que é feito no meu texto numa vintena de linhas, que estão à disposição dos leitores interessados.

Investigador em Relações Internacionais; antigo funcionário da Comissão Europeia; josepereiradacosta@hotmail.com 

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