O melhor da música em 2023

Os melhores álbuns de 2023. Escolhas de Daniel Dias, Francisco Noronha, Gonçalo Frota, Mariana Duarte, Mário Lopes, Nuno Catarino, Nuno Pacheco, Pedro João Santos e Pedro Rios


10

Três Anos de Escorpião em Touro

Três Anos de Escorpião em Touro de Filipe Sambado

Ao quarto álbum, Filipe Sambado abraçou o brilho digital-grotesco da hyperpop para fazer reluzir e expandir o seu cancioneiro. Ruptura e continuidade, saber fazer acumulado e vontade de surfar o presente – com alguma loucura e risco. P.R.


10 ex aequo

Vida

Vida de Jorge Palma

Um disco clássico, com tudo no sítio (baladas vintage, rock, blues). Como escrevemos: "É Palma com chave de ouro." P.R.


9

Desire, I Want to Turn Into You

Desire, I Want to Turn Into You de Caroline Polachek

Na vanguarda e numa via rápida para o tímpano, sem pingo de ironia e com todo o pretensiosismo – qual é o paradoxo? Desire só podia ser assim: um bolo alimentar de melodias sobre-humanas, soundbites cómicos, memórias corrompidas dos anos 2000 e erupções de emoção pura. Entrega total à libido, ou seja, pop. P.J.S.


8

Echoes

Echoes de Fire! Orchestra

Uma multidão de 43 músicos junta-se em torno do projecto capitaneado por Mats Gustafsson e mostra-se capaz das maiores explosões e das maiores subtilezas. Há em Echoes cordas à Gainsbourg, transe africano, labaredas rock, grandiosidade sinfónica e a intensidade inegociável típica da Fire! Orchestra. G.F.


7

The Greater Wings

The Greater Wings de Julie Byrne

O fingerpicking da guitarra envolve-nos aos primeiros segundos, como líquido amniótico. Num disco de luto, dispõe folk imaculada e uma voz clara, sussurrada e afirmativa, em instrumentais onde despontam harpa e sintetizador. Regalo melancólico, etéreo. P.R.


6

That! Feels Good!

That! Feels Good! de Jessie Ware

Sequela de What's Your Pleasure? – publicidade, mais que enganosa, engenhosa. Estabilizada na pulsação de electro-diva, Jessie Ware largou o tailleur e abraçou o pós-pindérico: esta é disco berrante e musculada. Um voto de repúdio a uma assimilação mainstream que tem carecido de espertina. P.J.S.


5

Manual de Romería

Manual de Romería de Rodrigo Cuevas

Depois de Manual de Cortejo, Rodrigo Cuevas queria mais festa. Ou, como chegou a dizer, depois da sedução, a consumação. Manual de Romería inspira-se nas músicas tradicionais das Astúrias e da Galiza, enfia-as na cama com electrónicas e músicas sul-americanas, e patrocina o absoluto exercício da liberdade. G.F.


4

Fountain Baby

Fountain Baby de Amaarae

Voz sedosa e libidinosa, escandalosamente luxuriante, a lubrificar o desejo sem travagens. Sonhos molhados e vívidos numa pop diamantífera, omnívora, também ela desejante: enrolada com o afrobeats, o alté, o R&B americano dos 90s, instrumentos da África ocidental e do Japão, samples do duo de hip hop Clipse, formigueiro punk, com Sade vestida de látex. Pop de vistas largas, de descendências várias, de um presente em ampliação. M.D.


3

False Lankum

False Lankum de Lankum

Não é um disco de música tradicional convencional, não é um disco em que velhas canções se cobrem de parafernália contemporânea para passar por moderno. Faz-se de canções de séculos passados, do nosso século, de originais acabados de nascer. A experiência humana vogando entre luz solar em mar calmo e o rumor ameaçador de vagas tempestuosas. A voz impressionante de Radie Peat, instrumentos tradicionais e fantasmagorias noise. Não é um álbum, é um monumento. M.L.


2

Xei di Kor

Xei di Kor de Prétu

Não é surpresa total o que ouvimos neste primeiro álbum de Chullage enquanto Prétu. Desde 2019 que fomos conhecendo canções que aqui encontramos e percebemos como esta é criação artística feita coro colectivo e multidisciplinar – música que se faz também vídeo, fotografia, teatro. Mas impressiona ouvir a obra completa, meticulosa tapeçaria sónica, funaná, semba, morna, hip hop a reverberar subgraves poderosos, onde se denuncia a miséria racista, a persistência do pensamento colonial, a cínica desigualdade capitalista, a existência fascizante do mundo como rede social. Manifesto imponente, música arrebatadora a trilhar caminho para um outro futuro, disco nada menos que imprescindível. M.L.


1

Fly or Die Fly or Die Fly or Die ((world war))

Fly or Die Fly or Die Fly or Die ((world war)) de Jaimie Branch

Música em ebulição e sempre aberta a metamorfoses. Música desassossegada e enraivecida, caótica e catártica. Música doce e desprotegida, reduzida aos seus elementos mais nucleares. O terceiro e derradeiro álbum do grupo Fly or Die é o mais belo e completo objecto do quarteto liderado pela trompetista Jaimie Branch, trabalhadora incansável na esfera do jazz cuja vida teve um fim tragicamente prematuro em Agosto de 2022.

O disco estava quase pronto quando a americana morreu, com 39 anos. Coube aos seus companheiros, sob a supervisão da irmã Kate Branch, atar os últimos laços – trabalhar nas misturas finais ou nomear os temas, por exemplo. Chad Taylor (bateria), Jason Ajemian (baixo) e Lester St. Louis (violoncelo) finalizaram um álbum que deixa claro que a rota, aqui, era claramente de ascensão.

Ouvimos uma banda a criar música verdadeiramente livre. Grooves de semblante mais carregado levam, mais tarde, a ritmos inesperadamente solares. Jazz com um toque caribenho transforma-se em dub hipnagógico antes e depois de levarmos com sonoros trovões punk: dois temas em que Branch usa a sua voz, uivando, vociferando, explodindo dinamite furiosa (a mesma que expande a ferocidade da secção rítmica). “Gonna take over the world, give it back to the land”, insistirá num momento. “Don’t forget to fight”, aconselhará noutro.

Num gesto especialmente surpreendente, ela e Ajemian, só eles os dois, reduzem Comin’ down, dos Meat Puppets, a um suspiro, abrindo as portas a uma pequena ideia de country e a um momento de verdadeira ternura (e talvez, também, alguma melancolia, dado o contexto que rodeia este álbum).

Jaimie Branch “nunca tinha ideias pequenas”, escreveram os seus companheiros na nota de apresentação do disco. É ao som de um álbum notável que lamentamos profundamente o muito que ficou por contar. D.D.