A ciência é feita de gente

Os resultados destes recentes concursos, organizados pela FCT, poderão produzir a prazo efeitos sistémicos de empobrecimento da diversidade científica do próprio sistema.

Ao longo dos últimos 20 anos, os diversos Governos, apoiados por um consenso alargado entre vários partidos e organizações políticas, apostaram no investimento continuado do sistema científico. Este esforço dotou Portugal de unidades de investigação e desenvolvimento (UI&D) com qualidade, capazes de enquadrar a atividade científica dos jovens investigadores que entretanto se formaram e se qualificaram, completa ou parcialmente, por intermédio do próprio sistema nacional.

Por outro lado, o sistema foi aperfeiçoando os seus mecanismos de avaliação dos investigadores e das UI&D, no sentido de promover a qualidade e a sua progressiva internacionalização. Apesar de ter conhecido um desenvolvimento assinalável, expresso nos resultados relevantes crescentemente reconhecidos a nível internacional, este sistema assentou logo desde o seu início numa base muito frágil: a precarização dos recursos humanos que foi capacitando. Na verdade, ao longo deste período, as consecutivas gerações de investigadores não conheceram outra realidade laboral que não passasse pela acumulação de bolsas ou de contratos a prazo que, na sua maioria, não ultrapassavam o horizonte máximo de cinco anos.

Foram estas pessoas que nas últimas duas décadas mais contribuíram para a consolidação do sistema, na medida em que se dedicaram a tempo inteiro à atividade de investigação, introduzindo um grande dinamismo e inovação no funcionamento das diversas UI&D. Contudo, essa densificação dos recursos humanos altamente qualificados não teve como resposta, expectável, a sua gradual integração nos quadros de investigação das próprias instituições e universidades. Isto sucedeu, em parte, porque na maioria não se institucionalizou a carreira de investigador. Ao invés, o que proliferou foi o modelo da instituição de acolhimento, cuja responsabilidade fundamental era precisamente a de acolher os investigadores que conseguiam, nos concursos da FCT e outros, ganhar bolsas ou contratos de investigação.

No fundo, o passo fundamental que deveria ter acontecido nunca ocorreu. Isto é, não houve uma política científica capaz de transformar as instituições de acolhimento em instituições de integração e fixação de investigadores. Ao contrário, o sistema foi gerando cada vez mais precariedade dos seus recursos humanos, independentemente da qualidade reconhecida em avaliações internacionais.

Criaram-se gerações de cientistas sem carreira e que no momento presente – em que o sistema se encontra num processo instável de reconversão, devido aos resultados dos recentes concursos levados a cabo pela FCT (tanto para investigadores como para as UI&D) – veem o seu futuro cada vez mais nebuloso. A única opção real para estas pessoas resume-se a uma alternativa: ou desistem da investigação ou emigram.

Paradoxalmente, o maior ativo que foi construído pelo sistema não pertence, na prática, nem às instituições (por exemplo, cerca de praticamente metade das que não passaram à segunda fase da avaliação terão grande dificuldade em manter os seus investigadores contratados ou bolseiros se este resultado do concurso às UI&D se confirmar), nem ao país (pois muitos não terão outro remédio senão contribuir para aumentar ainda mais o contingente da emigração). E assim parte significativa do investimento que levou mais de vinte anos a ser implementado é neste momento posto em causa.

Os resultados destes recentes concursos, organizados pela FCT, poderão produzir a prazo efeitos sistémicos de empobrecimento da diversidade científica do próprio sistema. É hora de os responsáveis políticos (desde o Governo até aos partidos da oposição) e dos responsáveis das instituições e das universidades perceberem, de uma vez por todas, o que está verdadeiramente em causa: a ciência é feita de gente qualificada, e sem pessoas suficientes não há ciência de qualidade. É uma verdade simples à qual o país tem o direito de obter uma resposta clara.

Sociólogo, investigador contratado

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