A “culpa” não é só dos millennials: “Não é a primeira vez na história que não queremos ter filhos”

Porque é que os mais jovens não querem ter filhos? Peggy Heffington acredita que devíamos estar a fazer uma pergunta diferente: porque é que criámos uma sociedade que tornou tão difícil ser mãe?

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Quando Marcia Drut-Davis, professora de 32 anos natural de Long Island, admitiu pela primeira vez que não queria ter filhos, o que sentiu foi alívio. As suas expectativas de vida estavam alinhadas com as do marido, Warren, e estavam decididos a contar a sua decisão aos pais de cada um. Pormenor importante: o ano era o de 1974 e fizeram-no durante o popular programa da televisão americana 60 Minutes.

O programa terminou com um pedido de desculpas aos espectadores por parte do locutor: “Desculpem-nos a perversidade de transmitir isto no Dia da Mãe.” Marcia nem pôde suspirar de alívio, o pior estava por vir: perdeu o emprego, recebeu ameaças de morte, foi descrita como “cabra ímpia que odeia bebés”. Foi descrita como egoísta.

“Isto é algo que se vê ainda hoje”, admite Peggy O’Donnel Heffington, historiadora e autora de Sem Filhos, agora editado em Portugal pela Vogais, em entrevista ao P3 por videochamada a partir da sua casa em Chicago. “Quando dizemos que são egoístas, o que se subentende é que há alguma coisa que deviam estar a fazer, mas que não estão porque não querem.”

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Peggy O'Donnell Heffington, historiadora e autora de Sem Filhos AF Photography

Sem Filhos nasceu de uma constatação: os mais jovens estão cada vez mais à vontade com a ideia de viverem sem filhos. Peggy Heffington debruçou-se sobre os motivos que as mulheres apresentam hoje para não ter filhos — e percebeu que não são fundamentalmente diferentes do que foram sendo apresentados desde a Idade Média: “Quando se pergunta às pessoas mais jovens porque é que não queriam ter filhos, dizem coisas como ‘não tenho família a viver perto de mim’, ‘não tenho dinheiro’, ‘estou preocupada com o ambiente’”, afirma. A historiadora dedica um capítulo do livro a cada um desses motivos porque “as mulheres sempre deram as mesmas razões”, munida de exemplos de mulheres do passado e dados que ilustram estas tendências (e que existem desde muito antes das millennials).

As taxas de natalidade têm vindo a decrescer nos últimos anos em todo o mundo. Andamos demasiado zangados, ansiosos ou exaustos para ter filhos?
Tornámos, enquanto sociedade, cada vez mais difícil ser mãe, portanto a resposta mais rápida é sim. Em parte, devido a políticas específicas — por exemplo, nos EUA, não temos licença de maternidade e as creches são incrivelmente caras. A tecnologia também faz com que seja mais fácil optar por não ter filhos, a contracepção é cada vez mais eficiente. E, com todo este contexto, cria-se uma situação em que cada vez menos pessoas querem ser mães.

Quando culpamos os millennials por não quererem ser pais, não devíamos antes olhar para o contexto em que se tornaram adultos? Somam crises mundiais, uma pandemia, guerras...
A forma como falamos sobre o assunto é normalmente do ponto de vista do desejo de ter ou não ter filhos — uma decisão individual. Na minha vida pessoal nunca olhei para isto como preto ou branco. É o contexto social, cultural, económico, ambiental e político que limita as opções viáveis.

A forma como trabalhamos no século XXI explica alguma coisa? É o preço que pagamos por querermos ter tudo?
Nos EUA, a percentagem de mulheres com filhos com menos de 18 anos que trabalham fora de casa é de cerca de 80%, são a vasta maioria. Historicamente, se recuarmos dois ou três séculos, todos os adultos de um agregado contribuíam para a economia familiar. Esta imagem típica do pai que vai trabalhar e da mãe que fica em casa era uma situação muito privilegiada e um luxo na maioria das famílias.

Acho que o que mudou não é necessariamente o facto de as mulheres terem de trabalhar, mas a forma como trabalhamos e a exigência dos nossos empregos. É o número de horas que trabalhamos, o facto de esperarem que estejamos sempre disponíveis, o nível de compromisso que devemos mostrar — estas foram as coisas que mudaram e que tornaram a escolha entre trabalho e maternidade muito mais rígida.

Mas, tal como explica no livro, não é a primeira vez na história que as mulheres não querem ter filhos. Que motivos foram apresentando?
Logo no início da pesquisa para o livro percebi que, quando se perguntava às pessoas mais jovens porque é que não queriam ter filhos, diziam coisas como "não tenho família a viver perto de mim", "não tenho dinheiro", "não consigo conciliar a carreira e um filho", "estou preocupada com o ambiente" ou simplesmente "não quero ter filhos". Ao olhar para o passado, percebi que as mulheres sempre deram as mesmas razões.

Por exemplo, se recuarmos até ao século XVII, na colónia francesa do Canadá, há provas de que quanto mais as mulheres se afastavam das suas mães, menos apoio comunitário tinham e menos filhos geravam. Para mim, isso mostra que o apoio de uma comunidade sempre foi importante para ter filhos. E também há a simples questão de desejo: há pessoas que não querem ter filhos porque não querem. Por exemplo, encontramos hagiografias de freiras medievais onde estes motivos foram enquadrados em termos religiosos, mas são mulheres que claramente não tinham interesse nenhum em ter filhos.

Referiu a questão do clima —​ há quem não queira ter filhos por ter medo em relação ao futuro. Não é um argumento novo, mas nota que está a ganhar mais força agora?
Nos últimos dez anos, cerca de 40% dos jovens — os da “geração Z”, actualmente na casa dos 20 anos — que participaram num estudo da Universidade de Bath [Inglaterra] disseram que o futuro do ambiente é a razão pela qual não consideram ter filhos. Achei que era um fenómeno novo, mas conseguimos olhar muito para trás na história e encontrar pessoas que expressavam preocupação sobre se o ambiente natural em que vivemos pode manter a nova geração. Conseguimos recuar até ao fim do século XVIII, quando Thomas Malthus — uma figura controversa, e de forma justificada — escreveu um tratado em que dizia que não podemos ter muitas novas pessoas no planeta porque não temos recursos naturais infinitos.

É possível falar de reduzir a população pelo clima sem soar a autoritarismo ou eugenia?
Malthus estava maioritariamente preocupado com as famílias mais pobres, que eram as que deviam ter menos filhos. Em meados do século XIX, as suas ideias foram adoptadas pelo movimento eugenista, que estava ostensivamente preocupado com a população —​ ainda que, na verdade, estivessem apenas preocupados com os partos indesejados, por exemplo, os das pessoas negras e pobres.

No fim dos anos 60 e início dos anos 70, houve um momento nos EUA em que os movimentos ambientalistas e feministas estiveram alinhados porque ambos queriam maior acesso a métodos contraceptivos e abortos seguros. As feministas queriam controlo sobre os próprios corpos e vidas; os ambientalistas queriam que as mulheres pudessem escolher ter menos filhos, pelo ambiente. No entanto, no início da década de 1970, as feministas separaram-se dos ambientalistas porque estes começaram a apostar numa linha mais dura: acreditavam que se devia limitar a fertilidade das pessoas, esterilizá-las depois de terem dois filhos ou colocar compostos químicos na água para que tivessem menos filhos. É aqui que está o perigo quando se fala de população. Uma coisa é um indivíduo dizer que quer ter menos filhos porque está preocupado com o ambiente; outra é ter governos a dizer que querem que as pessoas tenham menos filhos por causa do ambiente. Isso já é autoritarismo.

Porque é que ainda julgamos as mulheres que não querem ter filhos? É o facto de serem julgadas que demove muitas de ir até ao fim com esta decisão?
No início do século XX, Theodore Roosevelt discursou perante o Senado norte-americano e disse que era o dever dos homens serem soldados e das mulheres serem mães, e as mulheres que não fossem mães eram como soldados que tinham desertado. Acho que o estigma é causado, em parte, por expectativas de género e pela forma como entendemos a cidadania e o dever perante a nação. Isto é algo que se vê ainda hoje: quando dizemos que as mulheres que não querem ser mães são egoístas, o que se subentende é que há alguma coisa que deviam estar a fazer, mas que não estão porque não querem.

Ao nível pessoal, torna-se chato ter de me explicar. Muito raramente perguntamos aos pais porque é que têm filhos, mas estamos sempre a perguntar às pessoas sem filhos porque é que não os têm e imagino que para algumas pessoas seja só mais fácil tê-los: a partir do momento em que os têm, as perguntas desaparecem.

No livro fala de contracepção —​ e também de aborto. Se fossem os homens a ter filhos, teríamos mais opções? E estariam protegidas?
A autora Sheila Heti disse, numa entrevista à The Paris Review, que se os homens pudessem ter filhos, a questão sobre criar ou não criar vida seria uma das questões centrais da filosofia. Desde a Grécia Antiga, seria questão moral central: é ético criar vida?

Se houvesse algo que interrompesse as vidas profissionais dos homens, que afectasse o seu corpo de formas tão fundamentais, se tivessem de sobreviver a um processo perigoso e depois passar um ano e meio a alimentar um bebé com o seu corpo, enquanto lidam com as consequências profissionais e económicas disso, suspeito que haveria várias formas de optar por não o fazer.

No livro escreve que “mãe é algo que se faz, não é algo que se é”. Há pessoas que não têm filhos biológicos, mas assumem um papel importante na criação de alguém. Precisamos de uma definição mais lata?
Há uma corrente de pensamento dentro do feminismo negro que começou por propor esta ideia de nos livrarmos da palavra “mãe” enquanto nome e começar a usá-lo como um verbo. É uma concepção de maternidade menos centrada na família nuclear — isto é, composta por dois adultos a cuidar dos seus filhos biológicos, comum nos EUA e na Europa Ocidental. Esta corrente olha para as práticas de parentalidade da África ocidental, onde a pessoa que deu à luz tem sempre uma relação especial com a criança, mas entende-se que sozinha nunca conseguiria assegurar todas as suas necessidades.

Acho que esta é uma ideia muito bonita. Antes de escrever o livro nunca tinha pensado de forma crítica sobre a família nuclear, sobre a forma como isola as mulheres sem filhos, porque lhes diz que não têm um papel na vida das crianças. Também isola as mães ao dizer-lhes que são as únicas responsáveis por cuidar delas. A família nuclear é uma invenção relativamente nova. A socióloga Patricia Hill Collins chama-lhe não só a forma mais bizarra de família do mundo, mas também a forma mais stressante de ter filhos.

“As mulheres com filhos são mães. Não temos um termo para as mulheres sem filhos”, escreve. O facto de não haver esse termo dificulta a tomada de consciência política, activista?
Não há forma de falar das mulheres sem filhos sem falar do que lhes falta, do que elas não são. Foi um problema enorme quando comecei a pensar em escrever este livro, porque queria contar a história de um grupo de pessoas de forma positiva, mas a única forma que tinha para as descrever era negativa. Tentei usar descritores factuais, como “mulher que não teve filhos” ou “com experiência de infertilidade”. Estes descritores ajudam a contar histórias individuais, mas não ajudam na criação de um sentimento de grupo, que é algo que se vê em organizações que estão a tentar juntar as mulheres que não são mães. Os grupos “child free”, por exemplo, são uma forma muito particular de não ter filhos, têm subjacente a escolha de não ter filhos, mas deixam de fora as pessoas com infertilidade.

Nos Estados Unidos há um grupo que se chama Not Mom, e há pessoas que usam o termo “nomo” [abreviação de não-mãe]. Acho que a intenção destes grupos é chegar a um tipo de identidade que abarque toda a gente, desde as pessoas que estão felizes da vida sem filhos às que passaram por várias rondas de tratamentos de infertilidade e que, no fim, decidiram não continuar. O problema é que continua a incorporar um termo negativo. Acho que isso pode ser um entrave para juntar as pessoas sem filhos, mas também acho que ninguém chegou a um termo correcto até agora.

Nos últimos anos, têm crescido alguns movimentos radicais como o 4B na Coreia do Sul — recusa de namoro, casamento e sexo com homens e também recusa da maternidade. Que mensagem passa?
Não estou muito familiarizada com estes movimentos no presente, mas no livro falo do movimento separatista lésbico, com força nos anos 1970 nos EUA. Era um grupo de mulheres que, por razões políticas, recusaram a ideia de viver com homens. Este tipo de comunidades apenas com mulheres era tão extremo que algumas nem aceitavam crianças do sexo masculino. Eram uma dor de cabeça para o movimento feminista norte-americano, que apenas queria mais igualdade sem virar a sociedade de pernas para o ar. Acho que voltámos a um lugar onde, pelo menos na corrente dominante, este tipo de conversas está a acontecer dentro da sociedade e não separadamente. Em termos históricos, essa é a forma mais produtiva de avançar. As formas mais radicais, de separação, podem servir as necessidades desses indivíduos, mas não servem as necessidades da sociedade.

No fundo, as mulheres estão fartas de serem vistas como úteros com pernas?
De forma anedótica, acho que sim. É uma coisa que o movimento feminista tem articulado desde meados do século XX: quer tenhamos filhos, quer não, queremos ser vistas como valiosas para a sociedade. E acho que a ideia de que as mulheres são só úteis para a sociedade por causa do trabalho reprodutivo cria estigma junto das mulheres sem filhos, mas também não é bom para as mães porque as classifica como algo que só tem valor por causa desse papel social.

Acho que há uma exaustão da parte das mulheres com a ideia de que o seu valor depende de terem ou não filhos. Nos EUA, desde o Verão de 2022, quando o caso Roe vs Wade foi revertido pelo Supremo, o que quer dizer que os estados podiam tornar o aborto muito difícil ou até ilegal, o número de abortos aumentou, mesmo que seja mais difícil ou até impossível aceder a um aborto seguro. Ao tirar-lhes este direito constitucional, o que as mulheres ouviram foi “a coisa que mais valorizamos é o vosso trabalho reprodutivo” e decidiram não o fazer. Acho que é um indicador muito forte da nossa exaustão.

Porquê este livro? E porquê agora?
Assinei o contrato para o livro em Fevereiro de 2020 e escrevê-lo durante a pandemia mudou-o. A ideia era escrever um livro completamente diferente, que serviria para celebrar as coisas maravilhosas que as mulheres sem filhos do passado fizeram. Mas, enquanto estava fechada em casa durante a pandemia, percebi que as pessoas que estavam a passar um mau bocado eram as pessoas com filhos, que tinham ainda menos apoio. As coisas que tornam difícil ser mãe são precisamente os motivos que as pessoas apresentam para justificar o facto de não quererem. Devíamos pensar menos em nós como dois grupos separados de pessoas. Aí o livro deixou de ser uma celebração das mulheres que não querem ter filhos e passou a ser mais sobre como a sociedade se transformou num lugar onde ser mãe é difícil e as pessoas estão cada vez mais a tomar a decisão de não o ser.

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