A demora da resposta de Matos Fernandes à seca em 2022 (e outros casos menores, como o vinho de Galamba)

Matos Fernandes convocou Comissão Permanente da Seca tarde e a más horas. Ministério Público admite que ex-ministro do Ambiente adiou decisão para favorecer o resultado eleitoral do PS.

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Joao Pedro Matos Fernandes, então ministro do Ambiente, e o secretario de Estado da Energia Joao Galamba numa conferência de imprensa Nuno Ferreira Santos?
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O ano de 2021 terminou com mais de metade do país a registar escassez nas suas reservas de água, fenómeno revelador da seca meteorológica que haveria de se prolongar pelos meses seguintes. Apesar de todos os indicadores, a convocatória para a reunião de Comissão Permanente da Seca tardou. Informado sobre a situação pelo menos desde o dia 17 de Janeiro, João Pedro Fernandes esperou e só reagiu dois dias depois das eleições a 30 de Janeiro. Agora, naquela que é conhecida como Operação Influencer, o Ministério Público (MP) lembra estes factos concluindo que o ex-ministro do Ambiente terá prejudicado o combate à seca em favor de um melhor resultado do PS nas legislativas de 2022.

Referem os procuradores que o ex-governante, “desde pelo menos o dia 17 de Janeiro, já tinha sido alertado para o agravamento da seca no país”. Porém, o então ministro do Ambiente esperou para reagir. Matos Fernandes só convocou a Comissão Permanente da Seca com vista à interdição da produção de hidroelectricidade nas barragens de AltoLindoso-Touvedo, Alto Rabagão, Vilar-Tabuaço, Cabril e Castelo de Bode e a cessação da utilização de água para rega na albufeira de Bravura no dia 1 de Fevereiro de 2022, “ou seja, dois dias a seguir às eleições legislativas de 2022, e não antes, como era sua obrigação”.

Na decisão de adiar um encontro que iria expor a situação frágil em que país se encontrava e trazer “más notícias”, Matos Fernandes terá contado com “a colaboração de Rodrigo Costa e João Conceição”, presidente e administrador da REN, respectivamente, e José Pimenta Machado, da Agência Portuguesa do Ambiente, defende o MP no âmbito do processo revelado esta semana.

O vinho, as crianças, os resíduos e a ponte

Este episódio é uma breve alínea no processo que envolve vários actuais e antigos governantes socialistas, como o ex-ministro de Ambiente Matos Fernandes. É um caso menor ao pé dos quatro principais negócios alvo da investigação que atingiram o próprio António Costa, que, quando o Ministério Público divulgou a existência de suspeitas contra si, se demitiu de primeiro-ministro. Os principais casos debaixo da mira da Justiça são os dois negócios de lítio, um de hidrogénio e um investimento num campus para centros de dados em Sines.

Além da demora de Matos Fernandes na convocação da reunião para responder à situação de seca no país, o MP menciona outras questões menores. A actuação do ex-ministro de Ambiente também é referida no âmbito da “aprovação de diversa legislação do sector dos resíduos”, nota o MP.

Menciona-se ainda que João Pedro Matos Fernandes “impôs” o nome dos arquitectos Alexandre Alves Costa e Inês Lobo no júri do concurso para a construção da nova ponte do metro do Porto sobre o Rio Douro.

Na pequena lista de casos menores, o MP visa também João Galamba, referindo que “por diversas vezes” terá recorrido aos motoristas que prestavam serviço no gabinete do secretário de Estado da Energia e Ambiente para que “efectuassem diversas deslocações exclusivamente para seu benefício pessoal”, nomeadamente para o transporte das suas filhas, empregadas ou “para ir buscar garrafas de vinho”.

Segundo o MP, “as condutas acima descritas, individualmente consideradas, são susceptíveis de integrar, em abstracto, a prática de crimes de prevaricação, corrupção activa e passiva de titular de cargo político, tráfico de influência, de peculato, peculato de uso e e abuso de poder, entre outros e sem prejuízo de ulterior ponderação”.

A cronologia do caso da seca

Se noutros casos é difícil procurar a cronologia ou provas dos factos, na questão da seca e da demora na reacção do então ministro do Ambiente é possível assinalar alguns momentos que tiveram atenção mediática. Recuemos então ao final de 2021 e início de 2022. As bacias hidrográficas apresentavam-se inferiores às médias de armazenamento, observadas no período que decorreu nos anos hidrológicos de 1990/91 a 2020/21.

A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) anunciava, na circunstância, que as situações mais críticas referenciavam as albufeiras do Alto Lindoso-Touvedo, Alto Rabagão, Vilar-Tabuaço, Cabril e Castelo do Bode, todas com valores mínimos históricos armazenados.

Também os lençóis freáticos foram afectados pela fraca precipitação ocorrida ao longo do ano hidrológico 2020-2021, não permitindo a recuperação dos níveis de água subterrânea.

Na Região Norte do país, a escassez de água não favorecia o crescimento dos prados, pastagens e culturas forrageiras. A análise da APA acrescentava que a situação poderia tornar-se “preocupante para os produtores pecuários se não houver precipitação significativa nos próximos tempos.”

O impacto desta progressiva escassez de recursos hídricos observava-se com maior incidência no Sul do país, sobretudo nas bacias do Sado e Mira e nas reservas do Barlavento e Sotavento algarvios. A maioria das redes hidrográficas que alimentam as barragens do Sul tinha deixado de ter água suficiente para armazenar.

IPMA também alertou para escassez hídrica

O prof. Filipe Duarte Santos, da Faculdade de Ciências de Lisboa, explicava ao PÚBLICO no início de Janeiro de 2022 que os fenómenos associados à seca “afectavam toda a região mediterrânica, onde se registou um decréscimo da precipitação anual”. O investigador, referindo-se a um estudo publicado pela APA, destacava: “As disponibilidades hídricas em Portugal sofreram uma redução de 20%. A precipitação diminui de norte para sul e do litoral para o interior.”

O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) avisava que a situação iria agravar-se, prevendo que a seca meteorológica se estenderia a “quase todo o país, e que 34% do território entraria em seca extrema”, frisando que “só no mês de Janeiro de 2005 é que se verificou uma situação pior”. E tendo em conta as previsões mensais para Janeiro, Fevereiro e Março de 2022, numa informação oficial disponibilizada a 8 e 14 de Janeiro, os valores de precipitação total semanal seriam abaixo do normal em praticamente todo o território.

Mas apesar do agravamento das condições climáticas que se observava desde o final de Dezembro de 2021, não se vislumbrava qualquer tomada de posição tanto do Ministério do Ambiente como do Ministério da Agricultura.

Os agricultores e as associações que os representavam reclamavam do Governo os apoios de que necessitavam para minorar os efeitos da seca, da falta de água e de pastagens. Tardava a convocação da Comissão Permanente da Seca para encontrar a resposta à situação crítica que se vivia, no início de Janeiro de 2022.

A explicação para este compasso de espera foi dada nos últimos dias pelos procuradores do Ministério Público (MP), ao admitirem que “o ex-ministro terá prejudicado o combate à seca em favor de um melhor resultado do PS nas legislativas de 2022”. Matos Fernandes “tinha sido alertado para o agravamento da seca no dia 17 de Janeiro, mas apenas convocou a comissão permanente da seca — com vista a parar a produção de energia em cinco barragens e a cessação da utilização de água para rega na albufeira de Bravura — a 1 de Fevereiro, dois dias depois das eleições e não antes, como era sua obrigação, de modo a não prejudicar o resultado eleitoral do Partido Socialista nessas mesmas eleições”.

Com efeito, a 8.ª reunião da Comissão Permanente da Seca, ao fazer o ponto de situação meteorológico, hidrológico, abastecimento público e agrícola, confirmou que as condições meteorológicas “não tinham permitido a reposição dos volumes armazenados nas albufeiras e nas águas subterrâneas”. Por outro lado, as previsões existentes indicavam que “não haveria precipitação significativa no próximo mês (de Março). Os valores totais registados foram inferiores a 25% do valor médio. Houve ainda um agravamento da situação de seca meteorológica. O IPMA referia, no final de Janeiro, que cerca de 54% do território se encontrava em situação de seca moderada, 34% em seca severa e 11% em seca extrema, comprovando-se a situação crítica que o país estava a suportar, flagelado pela seca e a falta de água de norte a sul do país.

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