Regulador da Saúde abre processo a dois hospitais por mortes na urgência após espera de várias horas

Além das instruções relativas à morte de dois utentes nas urgências, a Entidade Reguladora da Saúde abriu um processo contra-ordenacional ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve, instituição que reincidiu “no esquecimento de uma compressa na sequência da realização de uma cirurgia (cesariana)”.

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Manuel Roberto

A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) abriu um processo à Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e ao Centro Hospitalar de Leiria depois da morte de dois utentes, um em cada unidade, nos serviços de urgências. Os casos sucederam em Janeiro e em Maio de 2020, respectivamente, e foram esta terça-feira divulgados na publicação das deliberações da ERS realizadas nos últimos três meses de 2021.

Em Janeiro de 2020 deu entrada, pelas 17h30, na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, EPE - Hospital Joaquim Fernandes (ULSBA) um homem de 60 anos que acabaria por morrer na sala de espera, onde esteve mais de três horas para ser observado. Na triagem o doente recebeu pulseira amarela (urgente), o que pressupõe que a espera não se deveria ter prolongado além de uma hora.

Na deliberação do Conselho de Administração da ERS, publicada esta terça-feira, é referido que “a conduta da ULSBA não se revelou suficiente à garantia dos direitos e interesses legítimos do utente”.

De acordo com o esclarecimento prestado à entidade da saúde pelo ULSBA, conforme se lê na deliberação da ERS, “o doente inscreveu-se no Serviço de Urgência Médico-Cirúrgica do Hospital José Joaquim Fernandes - Beja no dia 31 de Janeiro de 2020, pelas 17h31, sendo acompanhado por familiar e deslocando-se pelos meios próprios”. O utente apresentava um quadro com 15 dias de evolução de emagrecimento perda de apetite, náuseas e vómitos esporádicos, “apresentando em triagem sinais de desidratação ligeira, ficando a aguardar na sala de espera para atendimento, pela equipa do atendimento geral, que no dia era composta por dois elementos”.

Durante esse período, o acompanhante alertou duas vezes o enfermeiro de apoio e vigilância para o tempo de espera. “Pelas 21h, o doente foi reavaliado pelo mesmo enfermeiro e transportado para o interior da urgência para ser deitado em maca”, lê-se ainda no processo.

“Durante a mudança da cadeira para a maca, o doente ficou inconsciente sendo de imediato transportado para a sala de emergência, constatando-se que estaria em paragem cardiorrespiratória e iniciadas de imediato manobras de SAV, sem sucesso. Foi confirmado óbito e pedida autópsia para esclarecimento da situação.”

O hospital abriu um inquérito para “cabal esclarecimento da situação”, que ainda decorre. Por isso, e uma vez que a ERS ainda não teve acesso às conclusões, o Conselho de Administração daquela entidade de saúde deliberou que o ULSBA fica obrigado a dar conhecimento dessas mesmas conclusões.

Depois de analisar o caso, o regulador emitiu uma instrução à Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, EPE, no sentido de garantir em permanência que na prestação de cuidados de saúde em contexto de Serviço de Urgência “sejam respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes” e assegurar, em especial, “a adequação dos seus procedimentos às características dos utentes”.

Além disso, a ERS determina que a unidade hospitalar deve “implementar procedimentos que assegurem que, durante a permanência no serviço de urgência, os utentes sejam devidamente monitorizados e acompanhados enquanto aguardam observação médica (nomeadamente, através de retriagem), de forma a verificar quaisquer eventuais alterações do seu estado de saúde, e que garantam uma resposta atempada e clinicamente integrada”.

O processo foi encaminhado não só para a Ordem dos Médicos e à Ordem dos Enfermeiros, que deverão “aferir da adequabilidade clínica da actuação dos profissionais”, mas também ao Ministério Público.

Morreu após seis horas de espera na urgência

No caso do Centro Hospitalar de Leiria, EPE (CHL) - Hospital Distrital de Santo André, a ERS refere que tomou conhecimento através da comunicação social da morte de um utente de 42 anos no dia 8 de Junho desse ano. A morte ocorreu em Maio desse ano, depois de o doente esperar seis horas na urgência.

Também quanto a este episódio, a ERS considerou que a conduta do CHL-HSA “não se revelou suficiente à cautela dos direitos e interesses legítimos do utente”, uma vez que “não acautelou o seu devido acompanhamento, de modo a que a prestação de cuidados de saúde fosse realizada de forma integrada e tempestiva”.

O regular determina ainda que não foram cumpridos os procedimentos de triagem de Manchester, o que resultou num “claro prejuízo para a salvaguarda dos direitos e interesses legítimos do utente”.

Na informação prestada pela unidade hospitalar ao regulador, o hospital assegura que, na sequência do processo de inquérito aberto, cessou a prestação de serviços com o médico generalista responsável pelo atendimento do utente e que abriu um processo disciplinar à enfermeira que fez a triagem.

Ainda nessa mesma informação, aquela entidade hospitalar refere que foi uma “noite de grande afluência no SU [Serviço de Urgência], com doentes com espera média de cerca de seis horas, início de turno com mais de 50 doentes em sala de espera” além de “interrupções constantes por falhas técnicas a vários níveis”. A instituição refere que naquela noite estava “sem capacidade para colmatar necessidades com apenas dois colegas médicos gerais durante o turno, culminando em ausência de observação em tempo útil, tendo sido chamado sem resposta”.

À semelhança da instrução remetida ao ULSBA, a ERS determina, na instrução remetida ao Centro Hospitalar de Leiria, que “sejam respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes” no contexto do serviço de urgência. O regulador assevera ainda que sejam adoptados os procedimentos internos necessários para garantir que os cuidados de saúde descritos “são prestados aos utentes com qualidade, integração e prontidão, não os sujeitando a períodos de espera excessivamente longos para realização de exames e/ou tratamentos e procedendo à sua retriagem sempre que excedido o tempo alvo de atendimento fixado pelo Sistema de Triagem de Manchester”.

O processo foi igualmente encaminhado para a Ordem dos Médicos e para a Ordem dos Enfermeiros, a fim de “aferir da adequabilidade clínica da actuação dos profissionais” daquele hospital.

CHUA incorreu em “conduta negligente"

Ainda das deliberações da ERS consta o caso de uma utente que no dia 12 de Janeiro de 2021 foi submetida a uma cesariana no Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) e que teve alta no dia 16 do mesmo mês. No processo em causa lê-se que “a utente, sentindo mal-estar e dores crescentes, dirigiu-se ao CHUA por duas vezes, em 18 de Janeiro e em 19 de Janeiro de 2021. Depois de, no dia 18, após a realização de exames, ter sido reencaminhada para o domicílio sem diligências adicionais, no dia 19, a utente viria a ser submetida a cirurgia para remoção de um corpo estranho”, que se tratava de “uma compressa que havia ficado esquecida no decorrer da realização da cesariana”.

A ERS emitiu uma instrução ao CHUA, considerando que o prestador de cuidados de saúde incorreu numa “conduta negligente e desrespeitadora do direito dos utentes de acesso a cuidados de saúdes de saúde de qualidade”, e enfatiza “a necessidade de o prestador providenciar” a “adequada alocação de enfermeiros instrumentistas às equipas cirúrgicas”. Uma vez que o CHUA a reincidiu “no esquecimento de uma compressa na sequência da realização de uma cirurgia (cesariana)” foi instaurado um processo contra-ordenacional.​

Perante a situação, o regulador “conclui que, com a sua conduta subjacente aos presentes autos, o prestador desrespeitou a instrução que lhe foi emitida anteriormente pela ERS, por factos idênticos (esquecimento de uma compressa)”, no âmbito de um outro processo de inquérito”. Esse factor constitui uma contra-ordenação “prevista e punida com coima de 1000 a 44.891 euros, por desrespeito de norma ou de decisão da ERS que, no exercício dos seus poderes regulamentares, de supervisão ou sancionatórios, determinem qualquer obrigação ou proibição”.

Em resposta escrita enviada ao PÚBLICO, a ERS dá conta de que, quanto a factos ocorridos em 2021, foram recebidas 192 reclamações relativas às especialidades Ginecologia e Obstetrícia​. No que toca ao acesso a cuidados de saúde essas reclamações podem ter a ver com discriminação/ rejeição em razão de estado de saúde/ características pessoais ou quanto à resposta em tempo útil/razoável. No que concerne aos factos ocorridos em 2020, contam-se 194 reclamações; 72 relativas a 2019; e 24 relativas a 2018, num total de 482 reclamações até 2021.

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