Direitos digitais: pensar fora da Carta

Com a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, o Legislador optou por criar uma quimera, que tenta ser tudo e vai acabar por ser muito pouco. Mas não deixa de ser um começo...

Sobre a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital muito se tem escrito, dito e redito, tanto pelos comentadores mais ponderados como pelos incendiários da praça, que gritaram “lápis azul” com a mesma urgência de quem está na Venezuela, Hungria ou Polónia. Findado o escarcéu mediático, importa que a sociedade civil entre no debate.

A surpresa foi geral apesar de, como o respeitável deputado António Filipe soube bem apontar, a lei tenha estado em discussão durante quase um ano, e por isso talvez devamos sinceras desculpas ao Estado por não acompanharmos à lupa os seus trabalhos, imersos que estamos na mesquinhez dos nossos próprios assuntos.

Por outro lado, o Legislador, durante a referida translação terrestre, teve bem tempo para apresentar um texto melhorzinho, pois se este assunto se prestou a tanta polémica, justificada ou não, foi porque, fiel à lusitana tradição, a lei está redigida como se fora trabalho de casa do 7.º ano. Por algum motivo são recorrentes as queixas quanto à má qualidade da letra de lei.

Mas o que mais interessa é melhorar o que temos e o meu humilde contributo é apontar o que está a mais, o que está a menos e o que não está de todo.

Os excessos

Até pelo nome ambicioso que tem, poderia esperar-se que a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital seguisse o exemplo da Melhor Carta de Todas, a dos Direitos Humanos, ou até o da congénere canadiana, e se limitasse a enumerar direitos fundamentais e unívocos… Mas não, o nosso Legislador cronicamente pouco avisado não resistiu a misturar princípios com execução e a tentar fechar o céu com as pernas.

Por exemplo, a Carta garante, e muito bem, o acesso ao digital (Artigo 3.º), mas sentiu-se obrigada a especificar como fazê-lo, nomeadamente através de tarifa social. Não se pondera aumentar os acessos wi-fi livres ou resolver o oligopólio das telecomunicações, ou quaisquer outras vias. É como se a Carta fosse uma carta astral e A Solução estivesse escrita nas estrelas.

É este mesmo ímpeto, este voluntarismo legislativo, que está na origem da polémica com o “diabólico” Artigo 6.º, o tal em que o Estado “incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas” para combater a desinformação. Assegurar o direito à informação imparcial é tão oportuno quanto extraordinariamente complexo, mas nada que tolha A Solução, desta vez porventura inspirada na mais fina filatelia.

Sobressalta que o Legislador pareça ignorar que, hoje mais do que nunca, o que é fidedigno para uns é suspeito para outros, e crer que o problema da desinformação se resolve numa prazenteira tarde de redacções na Assembleia da República (ou num escritório de advogados perto de si).

A batalha contra a desinformação vai ser a batalha do século XXI, e não será o PS, o PAN ou o Parlamento em peso que a vai ganhar. É preciso ouvir as sociedades civis de todo o mundo — e ainda no dia 3 de Julho o provedor do PÚBLICO deu um contributo meritório — para depois agir com abertura, determinação e intensidade, que é como se vencem os combates impossíveis.

As omissões

Faltou proteger os cidadãos das curiosidades do Estado.

Não é consensual que o Estado tenha direito a saber a quem compramos, quando compramos e ainda por cima o que é que compramos, mas com o SAFT e o e-fatura, quando desgraçamos a dieta no McDonalds e ainda por cima como é que ficamos quanto ao McSunday... Há-de haver uma motivação nobre para isto, certamente.

Ora a Carta não nos protege destes apetites orwellianos, e é até possível interpretar a alínea d) do Artigo 19.º como indo no sentido inverso, pois diz garantir o “direito” a que “dados prestados a um serviço [público] sejam partilhados com outro, nos casos legalmente previstos”. Ora, como não refere em lado nenhum a necessidade de consentimento, rapidamente o direito se pode converter em liberalidade e escancarar-se de fininho a caixa de Pandora.

A “acessibilidade”, a eterna gata borralheira, faz uma fugaz aparição na Carta (n.º 2-h do 3.º), o que nem sequer surpreende, pois a acessibilidade no edifício digital do Estado é provavelmente ainda pior do que a dos seus edifícios físicos. Desde a dependência na entrega dos ficheiros SAFT de uma tecnologia (o Java) descontinuada nos navegadores desde 2015, às proezas técnicas de páginas como a do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (onde qualquer utilizador fica com a sensação de estar a incomodar), perde-se o ímpeto para falar do WCAG e de todas as boas práticas que o W3C (World Wide Web Consortium) vem postulando há muitos anos para tornar o mundo digital acessível a pessoas com necessidades especiais (deficiência visual, auditiva ou sensorial), e que a generalidade das páginas do Estado ignora com grande sucesso.

Outra questão que voa muito abaixo do radar é a das liberdades para com os dados biométricos. O próprio RGPD (Regime Geral de Protecção de Dados), no n.º 6 do Artigo 28.º, e um pouco à revelia da directiva europeia que transcreve (2016/679), dá a sua bênção aos empregadores para recolherem dados biométricos para controlo de acesso e assiduidade dos funcionários. Em caso de roubo desses dados, a empresa pode ou não ser multada, mas os funcionários arriscam a ter a identidade pulverizada por toda a “nuvem”, sem que ninguém lhes possa valer.

Podemos alterar a nossa assinatura e até o nosso nome, mas não as nossas impressões digitais ou nervos ópticos — a Carta deveria exigir que toda a autenticação digital tenha uma alternativa não-biométrica.

Fora da Carta

Suponhamos que queremos saber quanto é que o Estado cobra em IRS, IRC, IVA e Segurança Social no Faroeste Alentejano, confrontado com o investimento local e central; ou suponhamos que queremos sondar o fenómeno algarvio que faz com que essa região tenha um PIB acima da média nacional e que seja ao mesmo tempo a mais pobre do continente; quantas pessoas terão acesso e conhecimento para extrair, compilar e tratar esta informação? Chegarão a 100? E quantos dias lhes levaria?

Não há barreiras técnicas que impeçam essas análises de serem extraídas em minutos por qualquer pessoa habituada a usar um navegador. Houvesse vontade, e que magnífico impulso seria para a capacitação cívica!

Tornar pública e acessível a informação estatal seria também importante para combater certos anátemas, como por exemplo aquele que a Direita se entretém a lançar sobre os beneficiários do RSI, e que não singraria tão facilmente se qualquer cidadão pudesse consultar em minutos o valor mínimo, médio e máximo do subsídio, o tempo médio de usufruto, número de crianças em agregados apoiados, etc.

A Carta também não refere nem alude ao Open Government, iniciativa que, a ser bem executada, seria um grande reforço da confiança dos cidadãos por meio da única via possível: a da transparência. Talvez assim cessassem os furtos de vírgulas em textos legislativos.

Um passinho em frente e teríamos um Estado com pudores na ocultação de contratos; o leitor consegue imaginar-se consultando, a partir do seu sofá, o contrato da venda do Novo Banco ou até, tão somente, o plano de ordenamento e exploração cinegética da Quinta da Torre Bela?

Estamos a ir longe de mais, é verdade. Afinal este é só o século XXI.

Conclusão

Bem pensada, a Carta seria uma espécie de lei de bases, consagrando direitos fundamentais, alheia a conjunturas. Outras leis, autónomas e com escrutínio próprio, tratariam as diversas vertentes, sendo progressivamente afinadas em concordância com a evolução técnica e social.

Mas a Carta que nos saiu é nuns pontos de precisão microscópica (eg. 12.º-B), noutros é tão abstracta que se dissipa na estratosfera (eg. n.º 2-b do 3.º), e ainda noutros mistura alhos, bugalhos e topázios (eg. n.º 2-j do 3.º). Quanto ao famoso Artigo 6.º, está agora à mercê do Tribunal Constitucional... e estava realmente a pedi-las.

O Legislador optou por criar uma quimera, que tenta ser tudo e vai acabar por ser muito pouco.

Mas não deixa de ser um começo...

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