O centro da questão

Estou de acordo com o que o primeiro-ministro, António Costa, quis significar acerca da questão central que se coloca nas próximas eleições legislativas: saber se o Partido Socialista tem ou não maioria absoluta (ver entrevista ao Expresso de 24/8/2019). Dito de outra forma: perceber se à esquerda (só nela existe essa possibilidade), há ou não força social e política para impedir a governação absoluta do PS. E esse é, na realidade, o centro da questão neste pleito eleitoral.

O PS e António Costa são prudentes na formulação do seu apetite por ir ao almejado pote da maioria absoluta. Disfarçam-no, todavia, sob uma série de eufemismos que mais descobrem do que ocultam a ânsia afogueada de lá chegar. Sabem que a evidenciação do propósito é eleitoralmente muito embaraçosa. Ninguém esqueceu no país que as duas maiorias absolutas do cavaquismo e a do PS de Sócrates se traduziram no abuso absoluto. Um partido governante com maioria absoluta, ensina-nos o nosso historial recente desse tipo de situações, acha-se dispensado de falar às pessoas, de prestar contas à cidadania, de negociar e de debater dentro ou fora do Parlamento as suas decisões, anula facilmente o contraditório, tende a controlar os media em proveito próprio, ilude com muito maior facilidade a fiscalização possível dos seus atos, fomenta quase inelutavelmente o compadrio e a corrupção a todos os níveis. Ninguém se esqueceu em Portugal que as maiorias absolutas pretéritas do PSD e do PS significaram arrogância e autoritarismo, privatizações obscuramente negociadas dos sectores estratégicos da economia, ataques devastadores ao emprego e aos direitos do trabalho, corrupção e promiscuidade atravessando horizontalmente a banca, os negócios e a política, tudo a desaguar no colapso financeiro, na troika e no memorando de entendimento com ela preparado por aqueles dois partidos, a magna carta da austeridade.

É, pois, natural que na citada entrevista António Costa tente não dizer claramente ao que vem, ainda que o propósito seja evidente: regressar a uma maioria absoluta e declarar guerra preventiva a quem a possa política e eleitoralmente obstaculizar. Para esse efeito, e partindo da evidência que as direitas estão impotentes para assumir tal risco, o secretário-geral do PS debruça-se sobre as esquerdas. E, num exercício não isento de alguma desfaçatez, não hesita em destratar os parceiros de ontem (que afinal viabilizaram a governação socialista e as suas benfeitorias), agora reduzidos pelo primeiro-ministro ou a muletas de apoio ou a adversários a neutralizar. Com paternal condescendência, António Costa passa um atestado de “bom comportamento” ao PCP, o que não pode deixar de soar como algo insultuoso aos ouvidos de um partido fortemente empenhado em demarcar-se do PS e do seu Governo. E assim, reduzido, aliás injustamente, ao estatuto de parceiro menor e obediente. Ao contrário, o Bloco de Esquerda é eleito adversário preferencial, implicitamente apontado como força política suscetível de congregar os apoios dos muito defensores da “geringonça” que não desejam o regresso de uma maioria absoluta do PS. E por isso Costa despeja-lhe os anátemas de partido “inorgânico”, sequioso de mediatização e inseguro nos compromissos: ninguém diria que durante uma legislatura o Governo contou com a sua colaboração para existir e atuar como governo…

Não só por isso as acusações são algo surpreendentes pois parecem obnubilar o sentido das realidades do primeiro-ministro: quando fala da sede mediática estará a esquecer-se do secretário-geral do PS que se dedica por estes dias a percorrer de norte a sul a EN2 para aparecer, não só ao “meio-dia”, mas em todos os noticiários de todas as televisões, como o improvável “amigo do interior”? E quando na referida entrevista insinua a insegurança dos compromissos não ocorrerá a António Costa que foi o Governo do PS, pressionado pelos grandes interesses ou pelos patrões, que à última da hora deu o dito por não dito relativamente a compromissos formalmente assumidos no Parlamento em casos como a tributação das rendas da energia, a TSU dos patrões, a legislação laboral ou a lei de bases da saúde?

Nem se diga, como sugere António Costa ao Expresso, que o risco de recessão económica enfatiza a necessidade de um governo “seguro”, isto é, de maioria absoluta. O certo é que não há nada de menos seguro para o emprego, para os direitos de quem trabalha, para os pensionistas, para o Estado Social, do que um governo de maioria absoluta do PS ou da direita a gerir uma eventual crise. Pela simples razão, como a história recente da Europa demonstra (em França, na Alemanha, na Itália, em Espanha…), que nada de essencial separa a austeridade dos partidos socialistas no poder da dos governos da direita. Afinal foi o Governo do PS e do Eng.º Sócrates que chamou a troika e se entendeu com ela. O Governo PSD/CDS agravou o que já fora começado. Se há situação em que o condicionamento à esquerda da governação se torna mais urgente e necessária é precisamente para enfrentar com equilíbrio e justiça social uma situação de crise.

Dito isto, devo dizer que me confesso apoiante da experiência política que foi a “geringonça”, a despeito das suas limitações e incompletudes. Desejaria que o governo a sair das próximas eleições pudesse levar a cabo muito do que não foi feito no domínio dos direitos do trabalho, na resposta à urgência climática, no reforço dos serviços públicos essenciais, na recuperação nacional de setores estratégicos da economia, na melhoria das condições salariais e do nível de vida. Para que tal aconteça, entendo ser indispensável dar dois passos. O primeiro, não haver uma maioria absoluta de nenhum partido, designadamente do PS. O segundo, constituir as forças à esquerda do PS como garantia eleitoral e política da continuidade, aprofundamento e alargamento de políticas de justiça social no sentido das que estes partidos viabilizaram na legislatura agora finda.

Veremos se é possível criar uma relação de forças que permita ir por aí. Afinal, o povo é quem mais ordena.

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