Resposta do Iraque não permite avanços no processo da agressão em Ponte de Sor

O Governo iraquiano decidiu não levantar a imunidade diplomática dos suspeitos, filhos do embaixador. Especialistas em Direito Penal falam de obstáculos à justiça e consideram que MNE deve insistir.

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Os filhos do embaixador, com 17 anos na altura dos acontecimentos, disseram numa entrevista à televisão que tinham agido em legítima defesa Rui Gaudêncio

Não resultou em nada a expectativa criada em torno da resposta do Governo do Iraque ao pedido do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) de Portugal para levantar a imunidade diplomática de que beneficiam, no quadro da Convenção de Viena, os dois suspeitos de, em 17 de Agosto, terem agredido um jovem com 15 anos. Os suspeitos são filhos do embaixador do Iraque em Lisboa.

Numa missiva entregue ao ministério de Augusto Santos Silva, no passado dia 20 de Outubro, o Ministério dos Negócios do Iraque transmitiu que considera “prematuro tomar uma decisão sobre o levantamento da imunidade diplomática” aos filhos do embaixador do Iraque e disse que estes estão disponíveis para serem ouvidos. Na realidade, os dois principais suspeitos da agressão não foram ouvidos nem vão poder sê-lo. Para os dois juristas de Direito Penal contactados pelo PÚBLICO, a disponibilidade para serem ouvidos é “uma disponibilidade sem sentido”. E sem consequências.

“Estamos como estávamos no início”, diz André Lamas Leite, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. “Foi apenas uma manobra política de diversão por parte do Governo iraquiano que sabe bem que esta resposta não adianta nada, apenas serve para protelar a decisão.”

Os dois suspeitos só podem ser ouvidos quando for levantada a imunidade, sob pena de o próprio Estado português ser responsabilizado por violar as normas da convenção. Só podem ser ouvidos enquanto arguidos e não como testemunhas, por ser contra eles que o processo foi instaurado. Como intervenientes nos factos, não podem ser testemunhas.

Resposta dúbia e “hipócrita”

“Uma testemunha tem conhecimento directo dos factos mas não teve intervenção neles. A testemunha está obrigada a falar, e falar com verdade, enquanto o arguido pode remeter-se ao silêncio”, explica André Lamas Leite. No entender deste especialista em Direito Penal e consultor da Abreu Advogados, a resposta iraquiana foi dúbia e “hipócrita”.

“É uma disponibilidade [para serem ouvidos] sem sentido nenhum. É uma mensagem de teor diplomático. Não há cooperação possível”, considera por sua vez Paulo Sá e Cunha, da sociedade Cuetrecasas, Gonçalves Pereira que preside à Associação de Advogados Penalistas. O advogado realça o facto de se estar perante um caso de suspeitas de um crime grave.

O pedido para um levantamento do estatuto da imunidade foi feito por Portugal a 25 de Agosto, depois de a Procuradoria-Geral da República (PGR) comunicar que em causa estavam “factos susceptíveis de integrarem o crime de homicídio na forma tentada” e que, “face aos elementos de prova já recolhidos, na sequência de diligências de investigação efectuadas”, se considerava “essencial para o esclarecimento dos factos ouvir, em interrogatório e enquanto arguidos, os dois suspeitos, que detêm imunidade diplomática”.

"Jogo do empurra"

Perante a decisão do Iraque de não levantar a imunidade, o ministro Augusto Santos Silva esclarece que compete ao Ministério Público (MP) dizer se a resposta do Iraque era ou não satisfatória. Contactado pelo PÚBLICO, o gabinete da PGR disse na sexta-feira que sobre esse caso, "de momento, não havia nada a acrescentar".

Face ao que considera ser "um impedimento processual", André Lamas Leite diz que o MP deve comunicar ao MNE que "essa resposta é insuficiente".  E acrescenta: "Estamos a assistir a este jogo do empurra entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério Público. É mais dos Negócios Estrangeiros em relação ao Ministério Público, mas a PGR deve responder ao MNE dizendo que a resposta não é satisfatória. Deve explicar porquê. E o nosso ministério deve insistir junto do Governo iraquiano.”

O gabinete do ministro Augusto Santos Silva diz em respostas enviadas por email que se o MP decidir que a resposta não é útil, "o MNE diligenciará junto do Iraque no sentido necessário”. Se, pelo contrário, decidir que é útil "o MP fará as diligências que entender".

Mandado de detenção?

Sobre cenários que se colocam, perante o não levantamento da imunidade, Paulo Sá e Cunha lembra que “o estatuto de imunidade não é vitalício”. Assim, “o processo pode não ficar por aqui”. Até porque, como explica André Lamas Leite, não há o risco de este processo prescrever. "A lei diz que há suspensão da contagem do prazo da prescrição do procedimento criminal enquanto o procedimento não puder ser iniciado" por razões que não dependem do Ministério Público.

Assim, insiste Paulo Sá e Cunha: “Esta ideia de que o processo acaba aqui não é assim. O processo é instaurado e não tem que ser arquivado.” Uma série de condições teriam de ser reunidas para que o caso fosse eventualmente julgado em Portugal, diz. Mas não é impossível.

Seria preciso que os dois filhos do embaixador Saad Ali não estivessem no país onde o pai exercesse funções de diplomata e que "fosse em devido tempo emitido um mandado de captura", explica Paulo Sá e Cunha. Imediatamente antes de vir para Lisboa, onde apresentou as credenciais ao então Presidente Cavaco Silva, em Setembro de 2015, Saad Mohammed Ali foi embaixador na Líbia dois anos (entre 2013 e 2015) e na Bulgária três anos (entre 2010 e 2013).

"Se fosse emitido um mandado de capturado e os seus filhos fossem encontrados num Estado com acordos judiciários com Portugal, o pedido de extradição podia ser feito e eles poderiam então ser interrogados ou julgados em Portugal", conclui Paulo Sá e Cunha. O pedido seria feito pela PGR. O caso estaria fora da esfera política e diplomática.

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