Caos em Roma: o teste da antipolítica

A utopia do Cinco Estrelas entrou em choque com a realidade.

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Mais de dois meses depois da posse, a presidente de Câmara de Roma, Virginia Raggi, ainda não fechou a equipa REUTERS/Remo Casilli
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Todos os jornais italianos fizeram durante a semana manchetes sobre o “Caos Roma”. É indescritível a desordem no município, sucedem-se as demissões, crescem as suspeições. Por trás disto está uma “guerra civil” no Movimento 5 Estrelas (M5S, de Beppe Grillo), retratado como “vulcão em erupção”. A presidente da capital é Virginia Raggi, militante do M5S, eleita em Junho. Está sob fogo cerrado de parte do seu próprio movimento e, 70 dias depois da posse, não conseguiu ainda formar a sua equipa.

Que está em jogo? Saber se o M5S é capaz de exercer o poder na capital e, a partir daí, candidatar-se a governar a Itália. É um teste à credibilidade dos partidos de protesto em geral. “O que está a acontecer em Roma (...) é um acontecimento político de primeira grandeza”, capaz de provocar uma viragem “nos assuntos italianos e na própria natureza dos Cinco Estrelas”, assegura o La Stampa.

A trapalhada romana

Raggi conquistou Roma com slogans como “Transparenza!” e “Onestá!”. Escolheu para o pelouro do Ambiente Paola Muraro, experiente mas suspeita de “ligações perigosas”. O lixo é — a par do monstruoso endividamento e do colapso dos transportes — um dos cancros de Roma. No dia 17 de Julho, Muraro foi informada de que está a ser investigada pela Justiça por “gestão ilegal de resíduos”. Informa Raggi, a quem entrega um dossier. Mas não foi ainda formalmente notificada. Raggi limitou-se a informar o minidirectório romano do M5S, criado para controlar a sua gestão. No dia 4 de Agosto, a senadora Paola Taverna, do directório romano, enviou um email detalhado a Luigi di Maio, membro do directório nacional e virtual candidato do movimento às legislativas de 2017. Raggi e Muraro esconderam o assunto e mentiram aos jornais. O próprio Di Maio declarou, no passado domingo, nada saber. No dia 6, o Il Messaggero publicou na íntegra a mensagem de Taverna a Di Maio. Este reagiu com uma desculpa tosca: percebeu mal o email.

“Virginia Raggi mentiu sabendo que mentia”, acusa o L’Espresso. “Mentir é um pecado. Para os políticos é um pecado grave. Mas para os políticos que pregam a transparência absoluta, arrisca-se a ser um pecado mortal.” Di Maio fez o mesmo que Raggi. E quem mais na cúpula do M5S escondeu o assunto? É segredo.

Em plena efervescência das bases perante as manchetes dos jornais, estala um conflito interno que obriga Grillo a regressar à cena política. Di Maio, que representa uma ala “política” favorável à institucionalização do M5S, sai “queimado” desta crise. Reemerge a linha “guerrilheira” de Alessandro Di Battista e outros radicais da política de protesto. Grillo manda cerrar fileiras, denuncia um complot do “sistema”, ataca o euro e lança uma manobra de diversão contra a candidatura romana aos Jogos Olímpicos de 2024.

Pressionada a demitir vários assessores por ela nomeados, Raggi disse que não cedia. Acabou por se inclinar excepto num caso: o de Muraro. No dia 6 nomeara, com grandes elogios, o juiz Raffaele de Dominicis responsável pelas Finanças. Dois dias depois teve de o despedir — também está a ser investigado pela Justiça. Mas conserva Muraro.

Esta história tem muito mais aspectos pouco lisonjeiros para uma força que se olha como “povo eleito” e se considera “investido pela Divina Providência para redimir ‘um mundo de ladrões’”, escreveu um jornalista.

Outros denunciam o amadorismo do M5S. Sem quadros e técnicos competentes, Raggi recorreu ao gabinete de advogados onde estagiou, ligado à direita romana e ao seu mundo de interesses, para escolher a sua equipa. “Os técnicos necessários para gerir situações complexas, como a de Roma, não se encontram na Internet nem folheando a lista telefónica”, ironizou o site Formiche. Pergunta-se também: quem administra Roma, Raggi ou os “controleiros” do movimento?

Foi manifesta a incapacidade da “cúpula” para gerir esta crise. O M5S sempre foi dirigido pelos dois fundadores, Gianroberto Casaleggio e Beppe Grillo, o primeiro definindo a estratégia e o segundo fazendo a agitação. As votações na rede criavam a ilusão da democracia directa quando, de facto, o movimento não tinha uma estrutura e o centralismo era total.

Sequelas políticas

A vitória do M5S em Roma mudou a forma de olhar dos políticos e dos analistas. A estratégia romana foi concebida por Casaleggio, entretanto falecido, como etapa obrigatória para uma vitória eleitoral nas legislativas: provar que, sendo capaz de administrar Roma, poderia governar a Itália.

Os que nos últimos anos assistiram às farsas de Grillo poderão mostrar cepticismo. Mas, entretanto, o M5S consolidou o estatuto de líder da oposição, com intenções de voto um pouco abaixo do Partido Democrática (PD) de Renzi mas claramente acima das várias direitas. Nas eleições locais, o M5S não se limitou a vencer em Roma. Conquistou Turim e outras 19 cidades. Se se mantiver a nova lei eleitoral que prevê uma segunda volta para conceder a maioria absoluta ao partido vencedor, a estratégia dita “todos contra Renzi” pode funcionar. Se uma parte da direita e a extrema-esquerda apoiarem o M5S no “desempate”, este poderia vencer as legislativas. O próximo teste será o referendo constitucional previsto para o Outono.

Pode um movimento anti-sistema transformar-se em força capaz de exercer o poder? Escreveu no La Repubblica, no dia 5, o politólogo Ilvo Diamanti: “A crise romana constitui um grande risco mas também uma grande oportunidade para o M5S se tornar um partido normal. Que vá para lá do mito da democracia ‘directa’ e aceite a lógica da democracia ‘representativa’. (...) A crise de Roma pode ser útil. Pressionará o M5S não só a ‘normalizar-se’ mas a ‘politizar-se’. Tornar-se — e aceitar ser — uma força política e não só antipolítica. Deveria transformar-se em partido: de M5S em P5S.” Diamanti teme que o vazio criado por uma desintegração do M5S seja ocupado pela extrema-direita.

O problema do M5S não são as investigações judiciais nem as lutas intestinas, contrapõe no Corriere della Sera o analista Antonio Polito. “O verdadeiro problema pode ser definido como existencial, e isto foi confirmado pela crise de Roma: o seu projecto inicial, a utopia revolucionária em que se funda, impede-o de resolver o problema de fazer política com os instrumentos da política democrática. Isto acontece porque, no fundo, não acredita na política. Crê apenas em si, como prefiguração de um sociedade ideal, logo o único sujeito capaz de interpretar e aplicar a ‘vontade geral’ dos cidadãos, que se exprimem através da Rede.”

A confirmação do fiasco romano tenderá a fazer com que grande parte dos militantes se encerre no “fundamentalismo” originário. Di Maio explicou há duas semanas que Roma é uma “encruzilhada” para o M5S. É sobretudo uma prova interior: mudar sem renegar. Se falhar em Roma, o Movimento revelar-se-á como uma “falência” aos olhos da opinião pública.
As sondagens de ontem indicam um ligeiro recuo do M5S mas, de momento, nada anuncia a sua queda. A sua capacidade de governar é posta em causa mas permanece como única alternativa ao PD.

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