Autor do massacre de Nice teve cúmplices e planeava o ataque “há vários meses”

Segurança foi descurada, revela o Libération. Só dois polícias municipais guardavam a entrada da marginal de Nice.

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Tributo às vítimas do ataque na Promenade des Anglais Valery HACHE/AFP

O autor do atentado de 14 de Julho em Nice, o tunisino Mohamed Lahouaiej Bouhlel, "teve apoios e cúmplices", anunciou ontem em Paris o procurador que dirige o inquérito, François Molins.

Numa conferência de imprensa, disse que foram feitos "progressos notáveis" na investigação que envolve 400 especialistas e sublinhou que o terrorista planeava o ataque "há vários meses".

A revelação destes novos dados sobre o autor ou autores do atentado coincidiu com a publicação de uma investigação do jornal Libération que aponta falhas graves na organização da segurança do Passeio dos Ingleses, a marginal de Nice onde morreram 84 pessoas depois de assistirem ao fogo de artifício que assinalou o feriado do Dia da Bastilha.

Apesar de no país vigorar o estado de emergência e um alerta máximo de segurança devido ao risco de ataque terrorista, a entrada no perímetro pedonal do Passeio dos Ingleses não estava protegida pela polícia nacional. Este dado contraria as informações do Ministério do Interior francês e revela "a falta de transparência" do Governo, que "no mínimo, transformou a realidade", denunciava o jornal na edição de ontem.

Mohamed Lahouaiej Bouhlel usou um camião de 19 toneladas para provocar uma carnificina entre as milhares de pessoas que tinham assistido ao fogo-de-artifício, atropelando mortalmente 84 pessoas e provocando cerca de 200 feridos. Mas como conseguiu entrar numa zona apenas reservada a peões? A polémica surgiu logo a seguir ao ataque.

Segundo vários testemunhos e imagens recolhidas pelo jornal, e ao contrário do que têm garantido as autoridades, não havia viaturas nem elementos da polícia nacional a impedir a circulação automóvel no início da zona pedonal, na esquina do Boulevard Gambetta (onde Bouhlel deu início aos atropelamentos). Apenas dois membros da polícia municipal estariam a meio do passeio com essa tarefa; as seis vias onde a circulação automóvel estava proibida estavam vedadas apenas com barreiras metálicas e blocos rectangulares vermelhos e brancos. Só 370 metros à frente é que se encontrariam dois carros e seis agentes da polícia nacional, que se envolveram então na troca de tiros com Bouhlel, acabando por o matar, adianta o jornal.

O dispositivo montado corresponde aos planos de segurança que tinham sido traçados, constatou o Libération. Mas contradiz as versões do Governo de Paris. No sábado, dois dias depois do ataque, o ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, assegurava à saída de um conselho de Defesa que "a polícia nacional estava presente e muito presente no Passeio dos Ingleses", cita o jornal. Referia ainda que "veículos da polícia tornavam impossível passar pelo Passeio dos Ingleses" e que foi "pelos passeios, e de forma muito violenta" que o camião chegou à via pedonal.

Mais tarde, seria o primeiro-ministro, Manuel Valls, a recusar categoricamente qualquer falha dos serviços de segurança: "Não posso deixar que se diga que houve falhas quando não houve", declarou. Valls rejeitou ainda "as insinuações de que tudo poderia ter sido evitado". "Porque dizer isso é desacreditar as nossas forças de segurança que lutam todos os dias e que obtêm resultados". O primeiro-ministro garantiu que "há gráficos com os membros da polícia nacional que estavam no local".

Ou seja, resume o Libération, "até ao dia 20 de Julho, para o Governo, o dispositivo de segurança de 14 de Julho, colocado em conjunto com a municipalidade de Nice, não era sujeito a debate nem a interrogações".

Só ontem, o ministro do Interior anunciou que pediu à uma avaliação técnica do dispositivo de segurança mobilizado para o Passeio dos Ingleses, avançava outro jornal, o Figaro. "Este inquérito administrativo, sem prejuízo da investigação judiciária em curso, permitirá determinar a realidade deste dispositivo numa altura em que continuam as polémicas inúteis", comentou Cazeneuve. O responsável sublinhou que a "transparência e verdade devida às vítimas e suas famílias foi sempre seguida pelo Governo depois do terrível atentado de Nice".

As dúvidas tinham sido lançadas logo a seguir ao ataque, nomeadamente pelo antigo presidente da câmara de Nice, e actual presidente do conselho regional, Christian Estrosi. "Gostaria de saber como é que um camião conseguiu entrar na zona pedonal", questionou publicamente. A câmara também tinha acusado o Governo de não ter garantido a segurança, e de não ter mobilizado um número suficiente de polícias nacionais, numa zona onde eram esperadas 30 mil pessoas.

Mas será que um reforço da segurança teria mudado o rumo dos acontecimentos, questionou o Libération? "Impossível responder." Quando a polícia municipal lançou o alerta de que havia um camião a circular em alta velocidade, Bouhlel já tinha dado início à sua carnificina, circulando a mais de 90 quilómetros por hora. Os polícias municipais que estavam na barreira da rua Gambetta nem tiveram tempo de usar os seus revólveres de calibre 38, "de qualquer forma ineficazes contra as 19 toneladas lançadas em alta velocidade". Foi preciso esperar algumas dezenas de segundos para que os primeiros tiros das Sig-Sauer da polícia nacional conseguissem desviar o curso do camião.

O atentado, reivindicado pelo Estado Islâmico, levou a Assembleia Nacional a aprovar o prolongamento do estado de emergência por mais seis meses. O Governo tinha declarado um novo alargamento até 26 de Outubro, mas a oposição pediu que o período fosse até 2017.

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