O primeiro “referendo” sobre Renzi

As eleições locais italianas parecem insignificantes. São no entanto uma nova etapa da áspera luta sobre as reformas. Por isso têm uma dimensão nacional ou até europeia.

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As eleições autárquicas de hoje na Itália envolvem cidades importantes, como Roma ou Milão, mas terão um eco político muito mais amplo. São um primeiro teste para o referendo constitucional de Outubro em que o primeiro-ministro Matteo Renzi joga o seu futuro. No horizonte final estão as eleições legislativas previstas para 2018, que serão já disputadas com a nova lei eleitoral, dita “Italicum”.

As eleições locais ou regionais têm frequentemente efeitos nacionais. Dois exemplos: as regionais de 2000 levaram à queda do governo de centro-esquerda de Massimo D’Alema; em 2009, Walter Veltroni, fundador do Partido Democrático (PD), demitiu-se da sua liderança após perder as eleições regionais na Sardenha. Desta vez é diferente. Basta assinalar que a campanha eleitoral foi muito morna e que aquilo que políticos e politólogos discutem calorosamente é o referendo de Outubro.

O referendo foi uma escolha de Renzi para se legitimar e mudar o tabuleiro político italiano. Por isso, um duplo desaire do PD em Roma e Milão instigaria a formação de uma frente “todos contra Renzi” que o Movimento 5 Estrelas (M5S, de Beppe Grillo) tenta organizar, assim como daria novo fôlego à oposição a Renzi dentro do PD.

Roma e Milão

As eleições de Milão são materialmente mais importantes. Mas Roma tem um significado suplementar porque o M5S definiu uma estratégia em que a conquista de Roma seria o teste à sua capacidade eleitoral, tendo em vista derrotar Renzi no referendo e tornar credível a possibilidade de vitória do M5S nas legislativas de 2018. Foi uma aposta do seu mentor, Gianroberto Casaleggio, falecido em Abril.

A sua candidata, Virginia Raggi, partiu com clara vantagem nas primeiras sondagens. Uma derrota poria em causa esta estratégia. “Se o M5S não vence em Roma perde tudo. Mesmo que Raggi obtenha 30% na primeira volta, se perder na segunda, mesmo por um só ponto, isso levaria o M5S a perder dimensão. Seria um desmoronamento psicológico”, anota o jornalista Mauro Suttora, que fez parte do movimento.

A direita surge dividida em Roma. A sua grande aposta é Milão. É uma batalha a três: “Renzi deverá trazer para casa pelo menos uma das duas metrópoles. Idem para as oposições, a do Cinco Estrelas e a da direita”, resume o jornalista Ugo Magri. Para fazer o balanço temos de esperar a decisiva segunda volta, a 19 de Junho.

M5S é a alternativa?

Nas eleições europeias de 2014, o PD surpreendeu ao vencer com 40,8% dos votos, batendo o M5S (21%) e a Força Itália de Berlusconi (16,8). Para encontrar uma tão ampla vitória seria necessário recuar a 1958, em que a Democracia Cristã obteve o mesmo score. O grande vencido foi o M5S que apostou numa campanha eurocéptica. Comentou o Financial Times: “Renzi ganhou e ganhou em grande, demolindo a noção de que a vaga anti-sistema de Beppe Grillo era imparável.”

Mas o M5S resistiu e confirmou o estatuto de líder da oposição. As sondagens colocam-no na casa dos 27%, enquanto o PD regressa à sua cotação tradicional, nos 31%. Na direita, a Liga Norte, de Matteo Salvini, cavalgando temas xenófobos e a crise da imigração, aparece na casa dos 14% enquanto a Força Itália estagna nos 12. Note-se que a taxa de aprovação de Renzi e do governo é sempre superior à do partido.

O novo sistema eleitoral prevê um “prémio” que garantirá a maioria absoluta ao vencedor se este alcançar os 40%. Se ficar abaixo — o cenário realista — haverá uma segunda volta (ballottaggio) entre os dois partidos ou coligações mais votados para atribuir ao vencedor o prémio de maioria.

O politólogo Ilvo Diamanti chama a atenção para a incerteza do ballottaggio. Baseando-se numa sondagem feita em Abril, indica que o PD venceria [em 2018] uma coligação de todas as direitas, embora por pequena margem, mas arrisca-se a perder se o competidor for o M5S. “Naturalmente, o PD poderia contar no ballottaggio com o voto ‘pessoal’ no primeiro-ministro, muito mais conhecido e visível que os candidatos do M5S. Mas também é verdade o contrário. A capacidade de o M5S captar o voto ‘contra’ poderia transformar o confronto eleitoral numa espécie de referendo. ‘Contra’ Renzi.”

Trata-se de cenários a ter em conta. “Se o clima de insatisfação dos eleitores continuar a descarregar-se sobre o PD, Renzi poderia mudar de estratégia. Investir mais no governo do que no partido. Apresentar-se mais como ‘homem de estado’ do que como ‘líder político’.”

Resta a incerteza do futuro do M5S. Até agora o seu sucesso assentou no voto de protesto e no combate ao “sistema”. À medida que entra nas instituições será forçado a adoptar uma organização de tipo partidário. E também obrigado a tomar posição sobre problemas que hoje encobre sob o manto do protesto. A maioria dos seus eleitores considera-o capaz de administrar cidades mas não de governar a Itália.

Confronto na esquerda

A par das reformas económico-sociais, Renzi propôs-se mudar o sistema político italiano. As reformas a referendar foram aprovadas em 2015 no Parlamento por larga maioria, mas sem alcançar os dois terços. A principal novidade é a mudança do estatuto do Senado e o fim do bicameralismo perfeito. No modelo italiano, Câmara de Deputados e Senado, eleitos de forma distinta, dispunham dos mesmos poderes. No novo texto, os deputados terão proeminência no processo legislativo e só eles poderão votar moções de desconfiança no governo. Era frequente as duas câmaras terem maiorias políticas diferentes o que tornava lento e sinuoso o processo legislativo e forçava a negociação de acordos bastardos.

A revisão constitucional desencadeou reacções passionais. Os seus críticos, sobretudo da esquerda do PD ou da extrema-esquerda, criaram uma associação — “Comité para o Não” — que reúne dezenas de personalidades e denuncia a usurpação da “soberania do povo”. Como resposta, os “renzistas” lançaram um “Comité Nacional Basta um Sim para mudar a Itália”.

Por outro lado, figuras do antigo establishment do PD, antigos líderes ou primeiros-ministros como Massimo D’Alema, Romano Prodi ou Enrico Letta consideram urgente travar a ascensão de Renzi. D’Alema já apelou ao “não” em Outubro. Quase todos os opositores de Renzi aludem ao risco de “ditadura” ou ao “despotismo de minoria”. Renzi argumenta que, ao contrário do sistema britânico, não poderá dissolver o Parlamento nem nomear e demitir ministros arbitrariamente. Os críticos respondem que o perigo não vem do apagamento do Senado, mas da combinação entre o monocameralismo e o “Italicum” que, impondo uma maioria absoluta, provocará uma excessiva concentração de poder na figura do primeiro-ministro.

A grande resistência à reforma constitucional, que é um compromisso entre um sistema maioritário e a tradição proporcionalista italiana, deve-se sobretudo à lei eleitoral, que a esquerda do PD e uma parte da direita não desistiram de abolir. Recorreram aliás para o Tribunal Constitucional. Se este lhes desse razão, os italianos votariam em 2018 com um sistema proporcional puro, que produziria um Parlamento ingovernável na melhor tradição italiana.

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