Ataque contra Mariupol rasga cessar-fogo que nunca saiu do papel

Cerca de 300 mortos nos últimos 15 dias, ataques com rockets contra escolas, paragens de autocarro e blocos de apartamentos. É cada vez mais difícil salvar o que resta do Sudeste ucraniano.

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Habitantes de Mariupol prestam homenagem às vítimas do ataque de sábado Gleb Garanich/Reuters

Corpos espalhados pelas ruas, uns cobertos com lenços a tapar-lhes a face, outros mais expostos, com marcas visíveis da devastação provocada por uma tempestade de rockets que se abateu sobre um jardim-de-infância, uma escola e blocos de apartamentos na cidade ucraniana de Mariupol, na manhã de sábado.

As imagens que circulam pela Internet mostram aquilo a que só alguns discursos políticos mais desesperados teimam em fugir: se é verdade que o cessar-fogo assinado em Setembro do ano passado entre representantes do Governo de Kiev e dos rebeldes pró-russos nunca chegou a ser cumprido na totalidade, agora já não há dúvidas de que a guerra no Leste da Ucrânia voltou a atingir um pico de violência extrema. Não são ataques, não é um conflito: é uma guerra que já fez quase cinco mil mortos, cerca de 300 nos últimos 15 dias.

No domingo, os observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) foram a Mariupol tentar perceber o que aconteceu, e quem terá sido responsável pela morte de pelo menos 30 civis, num ataque com rockets Grad e Uragan, que caíram sem parar durante 35 segundos em tudo menos em alvos militares.

O local mais atingido foi a rua Olimpiiska e a sua área circundante, a pouco mais de oito quilómetros do centro da cidade, mas a apenas 400 metros de um posto de controlo das Forças Armadas da Ucrânia.

"A missão observou múltiplos impactos em edifícios, lojas, habitações e numa escola. Os observadores [da OSCE] viram automóveis em chamas e janelas estilhaçadas na parte virada para Nordeste de um edifício de apartamentos com nove andares. Os observadores contaram 19 ataques com rockets, mas estão certos de que houve mais", lê-se no relatório.

A linguagem da OSCE é cuidadosa, mas ainda assim aponta as palavras na direcção dos rebeldes pró-russos: "De acordo com a análise dos impactos, os rockets Grad foram lançados de uma posição a Nordeste, na área de Oktiabr (19 quilómetros a Nordeste da rua Olimpiiska), e os rockets Uragan foram lançados de uma posição a Leste, na área de Zaishenko (15 quilómetros a Leste da rua Olimpiiska), ambas controladas pela 'República Popular de Donetsk'" – as aspas estão no original.

Rebeldes acusam Kiev
Alexander Zakharshenko, o líder da autoproclamada República Popular de Donetsk, garante que não – para o rebelde pró-russo, os rockets que caíram na cidade portuária de Mariupol foram lançados pelo Exército ucraniano, com o objectivo de atrair para lá as forças rebeldes, que estão concentradas em defender a conquista do aeroporto internacional de Donetsk.

"Até agora, não estávamos a realizar nenhuma operação nas imediações de Mariupol. Estamos a poupar esforços", disse Zakharshenko, citado pela agência russa RIA-Novosti. Mas agora a estratégia vai mudar, disse o líder rebelde: "Depois de Kiev ter decidido culpar-nos pelo seu ataque com rockets Grad contra áreas residenciais em Mariupol, dei ordens para que as posições dos militares ucranianos a Leste de Mariupol sejam suprimidas."

O líder dos rebeldes garantiu ainda que os habitantes de Mariupol não têm nada a temer – ao contrário do que tinha sido avançado por várias agências internacionais no sábado, citando o próprio Alexander Zakharshenko, as forças pró-russas garantem agora que não têm qualquer intenção de lançar um ataque para conquistar a importante cidade portuária.

Enquanto dezenas de civis morrem por estes dias nas ruas de cidades como Mariupol e Donetsk (onde um ataque com rockets matou 13 civis na semana passada), a União Europeia (UE) marcou uma reunião extraordinária para a próxima quinta-feira. O anúncio foi feito no Twitter por Federica Mogherini, responsável pela política externa da UE.

Mogherini disse também que os rockets lançados contra zonas civis em Mariupol vão fragilizar ainda mais as relações da UE com a Rússia, acusada por Kiev e pela NATO de alimentar as forças rebeldes com quase 10.000 combatentes, a que Moscovo chama "voluntários". Na mesma declaração, a italiana voltou a pedir a Moscovo que exerça "a sua influência sobre os líderes separatistas e que ponha fim a qualquer forma de apoio militar, político ou financeiro".

Neste domingo, foi a vez do ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, de fazer um pedido a Federica Mogherini, numa conversa telefónica – para além de reiterar a posição de Moscovo de que o Presidente Vladimir Putin nunca ordenou o envio de tropas russas para o Leste da Ucrânia, Lavrov pediu a Mogherini que exerça a sua influência sobre o Governo de Kiev para que todas as partes se voltem a sentar à mesa de negociações, culpando o Exército ucraniano pelas dezenas de mortes entre a população civil nos últimos dias.

Numa outra conversa telefónica, com o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo garantiu que o seu país está pronto para contribuir para a paz na Ucrânia, mas deixou claro que o caminho para lá chegar tem de ser o mesmo que ainda não levou a lado nenhum: "Só pode haver resultados através do diálogo directo com Donetsk e Lugansk, que Kiev tem evitado a todo o custo, numa indicação clara de que o seu objectivo é a supressão do Sudeste da Ucrânia por meios militares."

Batalha por Mariupol?
Os pontos principais da guerra no Leste da Ucrânia são actualmente o aeroporto internacional de Donetsk (controlado agora pelos rebeldes) e a cidade portuária de Mariupol (nas mãos das forças de Kiev).

Apesar de não ter qualquer interesse operacional, por não passar de um cemitério de aço e pedra, o aeroporto é um dos alvos mais cobiçados pelas duas partes, por razões simbólicas mas também estratégicas – para os rebeldes serve como uma base onde poderão receber reforços; para Kiev é um local ideal para montar um cerco aos seus inimigos.

Quanto a Mariupol, trata-se de um ponto estratégico devido à sua localização – é a maior cidade entre a fronteira com a Rússia e a península da Crimeia, anexada em Março do ano passado por Moscovo. Se Kiev perder Mariupol, os rebeldes podem abrir uma autêntica auto-estrada no litoral sudeste da Ucrânia, à beira do Mar de Azov, e passar a controlar um dos maiores portos ucranianos.

Os analistas dividem-se quanto aos verdadeiros objectivos dos pró-russos, se de facto estiver em curso uma operação para conquistar Mariupol.

Para Aleksandr Khramchikhin, vice-presidente do Instituto de Análise Política e Militar, com sede em Moscovo, "parece que a criação de um corredor terrestre [entre a Rússia e a Crimeia] voltou ao topo da agenda". Mas a progressão entre Mariupol e a Crimeia (um território controlado pelo Exército de Kiev) pode ser muito difícil de concretizar, o que leva a um segundo cenário, tendo em conta a importância do porto da cidade: "Se os rebeldes conquistarem Mariupol, os ucranianos ficam privados da costa de Azov. Não em termos geográficos, mas em termos económicos."

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