Ucrânia e separatistas criam zona de segurança para salvar população civil

Um novo acordo assinado entre as duas partes prevê a criação de uma zona de segurança de 30 quilómetros, a retirada de armamento pesado de áreas residenciais e o fim dos ataques aéreos.

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Representantes da OSCE, da Ucrânia e dos separatistas reuniram-se mais uma vez em Minsk, na Bielorrússia SERGEI GAPON/AFP

Desde o início da guerra no Leste da Ucrânia, há mais de cinco meses, que as populações civis de cidades como Donetsk e Lugansk nunca estiveram tão perto de poderem regressar a uma relativa normalidade. Na madrugada de sábado, os representantes do Governo de Kiev e os líderes dos separatistas pró-russos chegaram a acordo para recuarem o mais possível as suas linhas da frente, assumindo posições defensivas e deixando no meio uma zona de segurança com 30 quilómetros de extensão.

O memorando de entendimento, patrocinado pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), não é um acordo de paz, mas poderá travar de facto os combates entre as duas partes, algo que não foi totalmente conseguido com o cessar-fogo assinado no dia 5 de Setembro.

O documento assinado agora em Minsk, na Bielorrússia, tem nove pontos. O mais importante é o recuo de 15 quilómetros das artilharias do Exército ucraniano e dos separatistas pró-russos, o que cria uma zona tampão com 30 quilómetros. A ideia é criar áreas de segurança para que as populações civis não sofram as consequências dos combates entre as duas partes.

Para além do recuo das peças de artilharia de calibre superior a 100 mm, o armamento mais pesado terá de ser retirado para zonas ainda mais distantes das que são ocupadas actualmente, sendo especificado que não pode haver nenhum tipo de armamento pesado perto de áreas residenciais.

Os termos do memorando – que pode ser entendido como uma lista de acções práticas para evitar os combates esporádicos que têm minado o cessar-fogo acordado a 5 de Setembro – ditam ainda que as tropas de ambos os lados devem permanecer onde estavam na sexta-feira, assumindo a partir de agora uma posição unicamente defensiva.

O cuidado na escolha das palavras é evidente no ponto que diz respeito ao fim dos ataques aéreos: "São interditos voos de aparelhos militares e de aparelhos militares estrangeiros na zona tampão, exceptuando os aparelhos da OSCE", determina o ponto n.º 7. A excepção em causa é o uso de drones de vigilância pela organização europeia, cujos observadores poderão circular sem restrições para verificarem se o mais recente acordo está a ser respeitado.

O uso da expressão "voos de aparelhos militares estrangeiros" é uma referência implícita à aviação russa, que as autoridades de Kiev e a NATO acusam de apoiar as forças separatistas, algo que Moscovo tem negado desde o início da guerra. O Governo de Kiev e a NATO acusam também a Rússia de ter enviado pelo menos mil combatentes para as várias frentes de batalha (Lugansk, Donetsk e Mariupol), mas o Kremlin afirma que qualquer cidadão russo que esteja a combater no Leste da Ucrânia foi para lá de livre vontade e por iniciativa própria.

Sem nunca fazer uma referência directa à Rússia, o último ponto do memorando estipula a saída de território ucraniano de "todos os grupos armados, equipamentos militares, combatentes e mercenários estrangeiros", o que deverá acontecer também sob a supervisão da OSCE.

A este respeito, o embaixador russo na Ucrânia, Mikhail Zurabov, disse que "há mercenários em ambos os lados". "É um assunto que tem de ser resolvido, e nós vamos tratar dele", afirmou, citado pela agência AFP.

O presidente em exercício da OSCE, Didier Burkhalte (também ministro dos Negócios Estrangeiros da Suíça) descreveu o memorando assinado em Minsk como "um passo significativo no sentido de tornar o cessar-fogo sustentável e uma contribuição importante para um acordo pacífico para a crise no Leste da Ucrânia".

O responsável da OSCE manifestou o desejo de que o acordo assinado na madrugada de sábado "traga alívio às populações que sofrem nas áreas afectadas" pela guerra entre as forças leais a Kiev e os separatistas pró-russos.

Estatuto político sem solução
O documento, que foi assinado ao fim de sete horas de negociações, não faz qualquer referência ao futuro estatuto político das zonas controladas pelos separatistas – o assunto mais importante para a resolução do conflito a longo prazo.

Na terça-feira passada, o Parlamento da Ucrânia aprovou uma lei que atribui um estatuto especial a "algumas áreas de Donetsk e Lugansk", que passa pelo reconhecimento do efectivo controlo político pelas forças separatistas até Setembro de 2017.

Neste sábado, o líder da autoproclamada República Popular de Donetsk, Alexander Zakharshenko (que esteve nas negociações em Minsk e assinou o memorando), voltou a lembrar a questão essencial que divide as autoridades de Kiev e os separatistas: "Nós temos a nossa opinião sobre esse assunto, e a Ucrânia tem a dela."

O que está em causa é o que Kiev e os separatistas entendem como "algumas áreas de Donetsk e Lugansk" e o que uma e outra parte defendem para o futuro dessas regiões – o Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, não admite a possibilidade de as províncias em causa se tornarem independentes, mas essa é a exigência fundamental dos separatistas para o fim definitivo dos combates.

Para além disso, a lei aprovada pelo Parlamento ucraniano no início da semana passada dá a entender que o estatuto de maior autonomia só será aplicado às áreas que os separatistas controlam de facto, e não à totalidade do território que pertence às províncias de Donetsk e Lugansk, que é a pretensão dos combatentes pró-russos – o aeroporto de Donetsk e a cidade de Mariupol, por exemplo, estão sob controlo das forças de Kiev.

O acordo de cessar-fogo assinado a 5 de Setembro serviu para reduzir o número de mortes entre a população civil, mas ainda assim morreram pelo menos 35 pessoas nas últimas duas semanas, entre civis e combatentes, de acordo com um balanço da agência AFP.

Já neste sábado, uma fábrica de armamento nos arredores de Donetsk que está sob controlo dos separatistas foi alvo de bombardeamentos, que não fizeram vítimas – a fábrica foi construída longe de áreas residenciais e estava encerrada quando foi atingida.

O ataque ocorreu no mesmo dia em que chegaram à cidade 200 camiões russos, carregados com o que as autoridades do país dizem ser ajuda humanitária, e que passaram a fronteira sem a autorização das autoridades de Kiev e sem a inspecção de organizações independentes. Moscovo diz que vai entregar à população de Donetsk alimentos, geradores, medicamentos, roupas quentes e água engarrafada, num total de duas toneladas.

Desde o início da guerra, nos primeiros dias de Abril, já morreram mais de 3000 pessoas e centenas de milhares fugiram das suas casas em Donetsk e Lugansk para outras regiões da Ucrânia e para a Rússia.

O conflito começou com a ocupação de edifícios governamentais da Ucrânia no Leste do país por separatistas pró-russos, depois de a Rússia ter anexado formalmente a península ucraniana da Crimeia. Em Maio, os líderes dos separatistas organizaram referendos em Donetsk e Lugansk, sem o acompanhamento da OSCE e não reconhecidos oficialmente por nenhum país. Em ambos os casos a esmagadora maioria dos votantes disse "sim" à independência das províncias, num processo que tinha como segundo passo um pedido de entrada na Federação Russa. Ao contrário do que aconteceu após um referendo semelhante na Crimeia, Moscovo nunca respondeu aos pedidos de Donetsk e Lugansk para serem incluídas no seu território.

Os nove pontos do memorando:

1 – O cessar-fogo deve ser considerado como geral;

2 – Os elementos militares e as formações militares ficarão nas posições que ocupavam a 19 de Setembro;

3 – É proibido o uso de todo o tipo de armas e as acções ofensivas;

4 – Num prazo de 24 horas após a aprovação do presente memorando, as armas de calibre superior a 100 mm serão retiradas para pelo menos 15 quilómetros de uma e de outra partes das linhas da frente, incluindo as zonas habitadas, o que deve permitir a criação de uma zona tampão de 30 quilómetros;

5 – É proibida a movimentação de armas e de equipamentos pesados em zonas habitadas;

6 – É proibido colocar minas nas proximidades da zona tampão. As minas já colocadas no interior da zona tampão deverão ser retiradas;

7 – Os voos de aparelhos militares e de aparelhos militares estrangeiros são proibidos na zona tampão, excepção feita aos aparelhos da OSCE;

8 – A missão de controlo dos observadores da OSCE será enviada para a zona de cessar-fogo nas 24 horas seguintes à aprovação do presente memorando;

9 – Todos os grupos armados, equipamentos militares, combatentes e mercenários estrangeiros sairão do território ucraniano sob a supervisão da OSCE.

(Tradução da agência AFP a partir do texto original publicado no site da OSCE, que está disponível apenas em língua russa)

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