Encostado ao cais, paquete Funchal procura ajuda para voltar a navegar

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Os proprietários do Funchal procuram financiamento para completar a renovação do velho paquete Jose Fernandes

Há dois anos em renovação no cais da Matinha, o histórico navio português viu esgotar-se o dinheiro que o podia fazer voltar ao mar largo. Descendentes de armador grego procuram investidores.

Há perto de dois anos encostado ao cais da Matinha, em Lisboa, o paquete Funchal procura quem o queira voltar a pôr a navegar. A companhia proprietária do último sobrevivente da frota de paquetes portugueses dos anos 60 não consegue dinheiro para terminar as obras de remodelação do navio.

"Corre o risco de ir parar à sucata", diz o especialista em história naval Luís Miguel Correia, recordando o triste destino de outras embarcações igualmente magníficas, como o paquete Infante D. Henrique, desmantelado em 2004.

Com interiores em madeira, o Funchal parecia ter a sua sina traçada quando uma convenção internacional proibiu, há dois anos, o uso de materiais combustíveis em navios de cruzeiro. O grego que resgatara o paquete a uma morte quase certa em meados dos anos 80, com o país quase falido sob a alçada do FMI e a governação de Mário Soares, voltou a ser fiel à paixão que o fez trocar os mares helénicos pelas águas lusas.

Para adaptar o paquete às novas exigências, o armador George Potamianos resolveu investir 15 milhões na sua reconstrução. Quando o navio trocou as viagens entre a Austrália, a Gronelândia e o Mediterrâneo pelo desolado terminal petrolífero desactivado da Matinha, em Setembro de 2010, o grego acreditava que ia ser possível transformar uma vez mais o navio numa embarcação de luxo, recriando a mística que já havia conseguido com outras remodelações.

O cenário económico europeu já não era, no entanto, risonho. Entre as dívidas que lhe foram deixadas pela falência de pelo menos dois operadores turísticos e a subida das taxas de juros do empréstimo contraído para financiar o renascimento do Funchal, a margem de manobra da empresa de Potamianos - a Classic International Cruises - não era grande. Mesmo assim, George não perdeu a esperança.

"Na última passagem de ano, estava o Funchal esventrado na Matinha, disse-me que este Verão recomeçaria a fazer cruzeiros, porque já tinha arranjado dinheiro para acabar as obras", descreve o arquitecto Martinez dos Santos, um passageiro com dezenas de viagens no paquete no currículo. Mas meses depois de celebrar o quinquagésimo aniversário no estaleiro sucedeu novo revés, aquele que talvez lhe tenha ditado a sorte de vez: em Maio passado Potamianos morreu.

À frente da empresa ficaram os seus dois filhos, os gémeos Alexandros e Emilios, e são eles quem admite que a situação não é famosa. "Se o dinheiro não aparecer, o navio vai ter de ser vendido tal como está agora", diz Alexandros Potamianos, explicando que as obras de renovação, agora praticamente paradas, já consumiram 12 milhões, faltando ainda outros seis milhões para que possam terminar.

Os trabalhos abrangem não apenas o aumento da área e a reconstrução dos camarotes com materiais não combustíveis como também a renovação do casco e a adaptação das principais máquinas. "75 por cento das obras já foram feitas", assegura. "Para conseguir os seis milhões em falta estamos à procura de investidores e a tentar conseguir financiamento junto da banca portuguesa", acrescenta Emilios Potamianos. Alexandros equaciona o futuro daquele que foi a paixão da vida do pai (ver outro texto nestas paginas): uma eventual tranformação em hotel ou restaurante. Enquanto espera pelo desenlace, o histórico paquete vai pagando taxas portuárias à razão de 8400 euros mensais. Os proprietários da Classic International Cruises dizem que os únicos contactos que têm levado a cabo com as autoridades portuguesas são precisamente para conseguir algum tipo de desconto das autoridades portuárias.

"É um disparate completo deixar a recuperação do navio por acabar, depois de todo o dinheiro gasto até agora", observa Luís Miguel Correia. "No mundo já não existem muitos exemplares como ele". Além disso, prossegue, as suas características fazem com que este seja um investimento comercial com sentido: pela forma como foi concebido, o Funchal continua robusto e gasta menos de metade do combustível que os seus congéneres com o mesmo tamanho. "Um navio como este pode durar mais 40 anos", confirma Alexandros Potamianos. Os herdeiros do armador grego asseguram que a empresa não corre risco de falência - muito embora existam empregados que se queixam de salários em atraso. "As vendas estão melhores do que em 2011", informam. E se a situação da empresa não é brilhante, alegam, isso deve-se precisamente ao dinheiro despendido na renovação do Funchal.

Martinez dos Santos indigna-se quando ouve falar numa eventual transformação em hotel. "É um disparate. Era importante que George Potamianos ainda estivesse vivo, para arranjar dinheiro para voltar a pôr o navio a navegar". Passageiro frequente, recorda-se das noitadas elegantes a bordo, do casino, da tripulação. Apesar da formalidade dos jantares e festas, o ambiente sempre foi ao mesmo tempo algo familiar, ou não se tratasse de um paquete de pequenas dimensões, se comparado com as cidades flutuantes que hoje sulcam os mares com quatro ou cinco mil turistas dentro, diz por seu turno o responsável pelo entretenimento a bordo dos outros navios da companhia, Telmo Miranda.

"Tenho muita pena do que se está a passar", observa o arquitecto octogenário. "Para ajudar a viabilizar o Funchal até eu contribuía, até participava num movimento para o salvar".

A paixão da vida de um armador grego

A forma como George Potamianos se referiu ao paquete Funchal até ao fim da vida faz pensar mais numa mulher do que num objecto inanimado. Dizia o armador grego que tinha perdido a cabeça assim que o vira pela primeira vez, em 1975. "Estava fundeado no Mar da Palha, esquecido pelo Governo há vários anos, e eu disse para mim: "Meu Deus, o que é isto?"", contou numa entrevista ao Expresso no ano passado. Foi a paixão pelo navio que o fez enamorar-se também por Portugal, ao ponto de se mudar da Grécia para aqui com a família.

Durante dez anos fretou-o para cruzeiros, até que por fim o comprou num leilão da Companhia de Transportes Marítimos em 1985. Havia ainda de comprar e remodelar outra embarcação histórica portuguesa, o paquete Infante D. Henrique, que para sua tristeza acabaria desmantelado por outra companhia anos mais tarde.

"A sua paixão pelo Funchal foi uma paixão doida", confirma o seu amigo e historiador naval Luís Miguel Correia. "Ele tratou com mais dignidade os navios portugueses que nós próprios". Quando trocou a bandeira de conveniência panamiana dos seus navios pela rubra e verde, em 2001, muitos foram os que o viram chorar durante a cerimónia. Nessa altura gastou vinte milhões de euros na renovação do Funchal. Três anos depois, durante os jogos do Euro 2004, foi pela selecção lusa que torceu, ao ponto de ter pintado a cara com as cores da bandeira portuguesa.

Oriundo de uma família grega de armadores, "sentiu nos últimos anos a concorrência violenta das grandes companhias de cruzeiros multinacionais que tudo têm feito para exterminar os poucos armadores independentes que ainda restam", contou Luís Miguel Correia quando George Potamianos morreu, em Maio deste ano.

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