Agrupamento de Escolas de Ovar Sul

“Agora vamos sentir-nos diferentes quando dissermos: somos livres”

A próxima edição do jornal escolar avança em Ovar. O grande tema é a pandemia, “não há como fugir”. Até “para as pessoas saberem como nos sentimos”, reforça uma aluna.

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Catarina Brandão, Jaime Denissen (em cima), Beatriz Miranda e João Francisco Morais (em baixo)

Final de fevereiro. No Agrupamento de Escolas de Ovar Sul ultimava-se mais um número do jornal escolar. O Carnaval, com grande tradição na zona, seria o tema em destaque na capa. Coordena O Nosso Jornal a professora Ana Cristina Bousbaa, incumbida, por isso, de redigir o editorial. Assim fez, não descurando a atualidade. A situação que já então se vivia nalguns pontos da Europa, por causa do novo coronavírus, levara ao cancelamento de uma visita de estudo programada para Itália — e o assunto era referido no texto.

Olhando agora para trás, a professora de Português não pode deixar de comentar: “Parece que já foi há tanto tempo... E o mais engraçado é que aqui estávamos a sair do Carnaval, com milhares de pessoas na rua, e considerávamos que a Itália é que era perigosa, não íamos com os alunos para lá.”

Sucederam-se os dias, desses que pareceram semanas ou mesmo meses, multiplicaram-se os casos e as notícias. Em pouco tempo, tudo se precipitou. As escolas acabariam por fechar, a nível nacional, a 16 de março. No dia seguinte, era decretado o estado de calamidade pública para o concelho de Ovar e estabelecido o cerco sanitário. A 18, declarado o estado de emergência em Portugal.

Entre muitas outras coisas, havia que decidir o que fazer com este número de O Nosso Jornal, distribuído no final de cada período letivo com uma publicação regional, o quinzenário vareiro Praça Pública. A direção do agrupamento optou por não desistir da edição. “Agora mais do que nunca”, conta Ana Cristina Bousbaa da conversa que teve. Era preciso “manter este elo, esta ligação”. O jornal não saiu em papel, como habitualmente, mas saiu online, disponível no portal do agrupamento (aqui).

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As primeiras páginas, editorial incluído, refletem já o que aconteceu em março, o resto não foi alterado. Na capa, reformulada, lê-se: “Estranho este jornal, mostrando e relatando acontecimentos que, atualmente, nos parecem tão distantes!” Visitas, espectáculos, atividades ao ar livre, o Carnaval (compreensivelmente arredado do centro da primeira página, onde agora brilha um coelho da Páscoa trajado com as cores e símbolos do agrupamento, desenhado por uma professora)...

Dos dois lados da “cerca”

Beatriz Miranda, Catarina Brandão, Jaime Denissen e João Francisco Morais são quatro dos alunos de uma turma do 11.º ano da Escola Secundária Júlio Dinis, sede do agrupamento de Ovar Sul, com cujo contributo o jornal conta. Viram, há poucos dias, o cordão sanitário ser levantado, ao fim de um mês. O confinamento não acabou, deixou de ser mais extremado do que na generalidade do país. Catarina vive a pouco mais de 100 metros da “cerca”, do lado de fora. Ela não podia entrar, os colegas não podiam sair.

Dado o contexto, é com grande naturalidade que, em 2020, expressões como “liberdade retirada”, “a sensação de nos sentirmos presos” ou “ficámos enclausurados” são pronunciadas por estes jovens de 16 e 17 anos numa conversa, mantida por Skype, com o PÚBLICO na Escola.

Quiz: Acha que sabe tudo sobre o 25 de Abril?

Uma das perguntas lançadas, a poucos dias do 25 de Abril, foi precisamente essa: “isto” — a pandemia, o confinamento — alterou a maneira como olham para a palavra “liberdade”? Ela passou a ter um significado mais concreto, palpável? Catarina Brandão é a primeira a falar. “A palavra liberdade tomou um sentido diferente, nesta altura, para nós, porque antes fazíamos a nossa vida normal e de repente, de um dia para o outro, ficámos enclausurados em casa, não podemos sair, não podemos ir dar um passeio, uma corridinha. Passámos a valorizar muito mais a nossa liberdade, os nossos pequenos momentos com amigos e todas essas coisas que são mais simples e que nós deixámos de poder fazer. Ir jantar fora, por exemplo.”

Jaime Denissen concorda: “Vamos dar mais valor à sensação de ser livre e às pequenas coisas. Vamos dar mais valor a uma tarde em que estamos no café com os amigos, em que vamos sair nem que seja só para tomar um café ou jantar fora. Acho que agora vamos sentir-nos diferentes quando dissermos: somos livres. Eu sou livre de ir ao café — houve uma altura em que não éramos.”

Para reforçar o que os colegas estão a dizer, João Francisco Morais lembra como as limitações em vigor são difíceis “sobretudo na idade em que estamos agora”, já “mais independentes” e habituados a circular nos tempos livres. “Eu ia ao café com os meus amigos, ia jogar basquetebol, aos fins de semana saíamos à noite. Temos a praia ao nosso lado, de bicicleta estou no Furadouro em 20 minutos. E agora estou há mês meio fechado em casa! É um mal necessário para um bem maior, temos de cumprir. E sem dúvida que dá um sentido diferente à palavra liberdade. Vamos valorizar muito mais, quando a tivermos de volta.”

Beatriz Miranda aproveita para pegar nesta ideia do que virá a seguir. Haverá também toda uma outra noção de liberdade “quando voltarmos a começar a adquiri-la”. Neste sentido: “Acho que não vai ser assim tão fácil para nós ficarmos conscientes disso. Vamos sempre duvidar daquilo que temos e daquilo que podemos fazer, onde podemos ir, onde não podemos ir. Vai ser uma coisa que vamos adquirir de novo, aos poucos, é um bocado estranho pensar nisso nesta fase.”

Levar o jornal “o mais longe possível”

Agora é tempo de pensar também na próxima edição do jornal. Já está em marcha, para sair no final do 3.º período, confirma a coordenadora. O professor Nuno Gomes, diretor do Agrupamento de Escolas de Ovar Sul, não tem qualquer dúvida de que desta vez a pandemia “é o grande tema, não há como fugir”.

Nascido com a constituição do próprio agrupamento (até então existiam três, tantos quantos os estabelecimentos agrupados em Ovar Sul), inserido no Clube de Comunicação e Criatividade - C3, O Nosso Jornal assumiu desde o início a função de elemento agregador, divulgando a vida das escolas e propondo-se contribuir para cimentar uma identidade.

Tentar levá-lo “o mais longe possível” está sempre no horizonte, assume Nuno Gomes, tanto mais que chega a emigrantes em vários pontos do mundo, uma vez que vai até onde o leva o Praça Pública. Quem o recebe aprecia esse “detalhe saboroso”, uma outra forma de ter notícias da terra. E de “ver gente conhecida” — os leitores identificam por vezes nas páginas “os filhos ou os netos de alguém que conhecem”.

Chegou agora o momento de O Nosso Jornal ser chamado a desempenhar um novo papel, neste contexto insólito. “Há muitas cicatrizes que vão aparecer”, decorrentes das perdas, do medo, dos sustos. “Vai ser necessário libertar esses fantasmas” — e o jornal pode ajudar, acredita o diretor.

No Skype, a conversa com os quatro estudantes passa, então, para a possibilidade de trazer para um registo jornalístico a experiência destes dias de quarentena. Até “para as pessoas também saberem o lado dos alunos e como é que nós nos sentimos”, defende Catarina Brandão. Quem gostariam de entrevistar, que perspetiva abordar?, desafiamos:

Catarina — Falar com um especialista da epidemiologia era interessante, contar mais essa parte, que as pessoas não sabem.

Jaime — Exato. Gostava de falar com um especialista para perceber como é que um vírus que passa de animais e infeta humanos é tão contagioso e tem efeitos tão devastadores, na nossa sociedade, num período de tempo muito reduzido.

João — Eu gostava de falar com uma equipa de investigação que estivesse a desenvolver um medicamento. Ou um economista, que me falasse de como isto afeta a economia do país...

Jaime — Ou um político, assim de um cargo um bocado mais elevado. Por exemplo, António Costa. Eu interesso-me muito por política e gostava de saber como é lidar, também do ponto de vista político, com uma situação tão complicada e que foi tão repentina.

Catarina — Era interessante falarmos com um médico ou um enfermeiro, alguém que trabalhe num hospital, mesmo na linha da frente.

Beatriz — A parte comportamental também era muito importante, visto que o jornal é para todas as pessoas, para as pessoas saberem como é que os outros têm lidado com isso e como é que os especialistas veem essa parte da situação: o que aconteceu com cada um de nós, os nossos comportamentos. Mesmo para mostrar que apesar de estarmos em situações diferentes elas são todas muito iguais, porque estamos todos a passar pelo mesmo.

João — Eu gostava de entrevistar um milionário. Daqueles que têm aquelas casonas, têm campo de ténis, têm piscinas, têm tudo lá dentro... A quarentena deles deve ser muito melhor que a nossa.