Daqui a quatro dias, o Azul celebra o seu segundo aniversário. O nome do projecto do PÚBLICO de jornalismo dedicado à crise climática e ambiente e às muitas facetas da vida que existe na Terra é inspirado no pequeno ponto azul-claro de que falava o astrofísico Carl Sagan quando viu uma imagem da Terra vista de longe. A fotografia foi tirada pela sonda Voyager 1, lançada para o espaço a 5 de Setembro de 1977.

Essa imagem longínqua não estava prevista no plano inicial da missão espacial, mas a equipa tinha decidido "olhar para trás" antes de a sonda seguir o seu caminho para o espaço interestelar. Estava a 6400 milhões de quilómetros da Terra e as imagens só cá chegaram 77 dias depois. O resultado já o conhecemos há anos: um pequeno ponto na imensidão do espaço onde está toda a vida que alguma vez conhecemos. "Todos os santos e pecadores da história da nossa espécie viveram lá – numa partícula de poeira suspensa num raio solar", como descreveu o astrofísico norte-americano no livro O Ponto Azul-Claro (recentemente re-editado pela editora Planeta). Espero que não se importe com o uso de tantas das belíssimas palavras de Carl Sagan – muitas haverá nesta newsletter.

Na altura do lançamento do Azul, a 22 de Abril de 2022 – que é também o dia em que se celebra o Dia da Terra –, lancei-me a ler as páginas dos livros O Ponto Azul-Claro e Cosmos (que agora voltei a abrir para escrever esta newsletter). Já conhecia a placa que acompanhava a missão Pioneer, mas lembro-me de ter ficado fascinada por saber que uma caixinha de memórias humanas anda a vaguear pelo espaço à espera de ser encontrada.

Não falo só das sondas em si, que são também um reflexo das mãos e mentes que as criaram. Falo do disco dourado que acompanha cada uma das sondas Voyager, com músicas, fotografias e sons da Terra. Com um bocadinho do que somos. Como foram as primeiras naves a sair do nosso sistema solar, levaram consigo esta mensagem como "uma saudação" para outros possíveis seres.

Na página 376 do livro Cosmos (edição Gradiva), Carl Sagan descreve com mais detalhe que, afixada a cada uma das Voyager, "há um disco de fonógrafo em cobre e banho de ouro, com carga e agulha e instruções para utilização". É um pequeno baú da existência humana e da nossa vivência na Terra: tem sons de um recém-nascido, canções, dezenas de imagens e fotografias de plantas, paisagens, e da nossa localização no sistema solar. Tem saudações em dezenas de línguas (incluindo em português: "Paz e felicidade a todos") e até inclui um electroencefalograma com as ondas cerebrais da escritora Ann Druyan, mulher de Carl Sagan. Descreve como é um ser humano. Cada disco foi feito para durar milhões de anos. Como se fosse uma mensagem numa garrafa, à deriva num "oceano cósmico".

Podemos ver no site da NASA algumas das memórias escolhidas para viajar a bordo das Voyager (também as pode ver neste vídeo da Vox, por exemplo). Vê-las dá-me uma sensação de tranquilidade e admiração, quase como se estivesse num museu existencial. De que somos parte de algo maior, e que mesmo assim somos tão pequenos nesta imensidão que nos rodeia. Somos tanto, mas tão pouco.

O objectivo desta mensagem cósmica era mostrar a outros possíveis seres do espaço interestelar "o que nos parece único a propósito de nós próprios", dizia Sagan. Há fotografias de casas e monumentos (como a Grande Muralha da China ou o Taj Mahal). Há fotografias de seres humanos a comer e a cuidar uns dos outros. O disco inclui música de várias culturas e vários cantos do planeta, "parte da qual exprime o nosso sentimento de solidão cósmica". As imagens da guerra, pobreza e crise ficaram propositadamente de fora.

Dei uma grande volta para chegar a este ponto: este é o planeta que tínhamos (e ainda temos), o planeta que nos orgulhávamos de mostrar. Mas é também o planeta que devemos proteger e pelo qual devemos lutar. Com o rumo de uma crise climática que não dá sinais de abrandar se não pararmos as desvairadas emissões de gases com efeito de estufa que desregulam o planeta, com guerras em curso, com um descuidado com os outros seres que habitam o planeta, o que nos espera?

Em Cosmos, Carl Sagan escreve que a inteligência humana nos dotou de poderes espantosos, mas que não estava "ainda esclarecido se teremos o bom senso necessário para evitar a nossa própria autodestruição". O livro foi publicado em 1984. Não sei se a resposta já é clara, há esperança e ainda há tempo de agir. A pergunta fica no ar. Que planeta vamos escolher ter daqui a uns anos?

De resto, é tudo uma questão de perspectiva. Escrevia Carl Sagan (é a última citação, prometo): "Depois de a Terra morrer, daqui a cerca de cinco mil milhões de anos, depois de ter sido esturricada ou mesmo engolida pelo Sol, nascerão outros mundos e estrelas – e nada saberão de um lugar em tempos chamado Terra".