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Longe vão os tempos pandémicos em que um trabalhador digital conseguia estar em casa e acumular dois empregos a tempo inteiro. Chegou um novo ciclo económico e, com ele, um novo ciclo para as tecnológicas, incluindo as big tech

Nestes últimos meses têm-se sucedido as notícias de despedimentos significativos em algumas das maiores e mais conhecidas empresas de tecnologia (e em muitas das mais pequenas e menos conhecidas). A Apple é uma excepção – lá iremos.

Um dos anúncios mais recentes veio do Spotify, o serviço sueco de streaming de música, que comunicou nesta segunda-feira que vai cortar 6% da força de trabalho, a que correspondem uns 600 funcionários. Vale a pena olhar para os números dos despedimentos noutras empresas e para a forma como os respectivos CEO os justificaram.

A Microsoft vai despedir cerca de dez mil trabalhadores, ou 5% da força de trabalho. Eis uma das frases do CEO, Satya Nadella: "Em primeiro lugar, vimos os consumidores acelerarem o seu consumo digital durante a pandemia, agora estamos a vê-los a optimizar os gastos digitais para fazerem mais com menos."

Já a Alphabet (a empresa dona do Google) vai cortar 12 mil empregos, 6% do total. Disse Sundar Pichai: "Ao longo dos últimos dois anos, vimos períodos de crescimento drástico. Para corresponder a esse crescimento e alimentá-lo, contratámos para uma realidade económica diferente da que enfrentamos hoje." A medida segue-se a vários outros cortes, incluindo uma redução na Area 120, uma incubadora de projectos internos da Alphabet, e o fim da plataforma de jogos Google Stadia, consumado na semana passada.

Por seu lado, a Amazon avançou com o despedimento de 18 mil pessoas. A empresa recorre a muito mais mão-de-obra do que as suas congéneres no grupo das big tech, pelo que o número representa pouco mais de 1% do total. "As empresas que duram muito tempo atravessam diferentes fases. Não estão num modo de expansão significativa de pessoal a cada ano", escreveu Andy Jassy, que no ano passado tomou as rédeas da empresa das mãos de Jeff Bezos.

Os exemplos podiam continuar: Meta (11 mil empregos, cerca de 13% da força de trabalho); Salesforce, uma gigante do software empresarial (sete mil; 10%); Twitter (3700 pessoas, mas aqui, entre despedimentos e demissões na sequência da novela Elon Musk, e a retirada da empresa de bolsa, as águas são mais turvas). 

Os cortes não acontecem apenas nos EUA, afectando também funcionários noutras geografias, Europa incluída. 

Muitas destas empresas tinham crescido extraordinariamente desde finais de 2019. Segundo contas do Wall Street Journal, o número de funcionários da Amazon duplicou nos últimos três anos. Quase o mesmo se passou com a Meta, que cresceu 94% à medida que Mark Zuckerberg investia na sua duvidosa visão de um universo virtual. A Alphabet teve um aumento de 57% e a Microsoft, de 53%. A excepção foi a Apple, que cresceu uns relativamente modestos 20%, o que poderá ajudar a explicar por que não anuncia agora cortes em larga escala.

A conjuntura macroeconómica com o custo do dinheiro a subir e os consumidores a fazerem contas às despesas num cenário de inflação justificará, em boa parte, os despedimentos.

Contudo, olhando para o que disseram os CEO, e tendo seguido o que fizeram nos últimos (e atípicos) anos, é difícil não encontrar pelo menos algum do nevoeiro pandémico que nos toldou o raciocínio colectivo. Quantos de nós não pensámos (ou conhecemos quem pensasse) que nunca mais poríamos os pés no escritório? Que frequentar restaurantes não valia o preço e o incómodo, e que iríamos para sempre encomendar para comer no conforto da própria mesa de jantar? Que um serão de Netflix era incomparavelmente melhor do que uma bebida num bar barulhento? Que a vivenda com jardim no meio do nada pela qual trocámos o apartamento na cidade era tudo o que precisávamos para um quotidiano feliz?

Talvez a Microsoft tenha, pelo menos, atribuído alguma probabilidade a um cenário em que íamos todos trabalhar 100% do tempo no Teams. Talvez a Amazon tenha acreditado que não voltaríamos aos apinhados centros comerciais. Porém, a pandemia terminou, os velhos hábitos regressaram, as cidades demonstraram mais uma vez o que têm demonstrado ao longo de milénios (que são pólos de atracção de pessoas) e, contrariados ou não, muitos trabalhadores retornaram, mesmo que parcialmente, aos escritórios. Idem para os consumidores às lojas físicas. O mundo do trabalho e do consumo não está como antes da pandemia; mas os anos pandémicos não foram um novo normal.

Em todo o caso, a vaga de despedimentos marca um novo ciclo. Como nota um interessante artigo no New York Times, há aqui uma divisão geracional. Esta é uma realidade nova para os trabalhadores mais novos, mas é algo familiar para os mais velhos, que passaram pela bolha das dotcom ou pela crise de 2008.

E assim entramos em 2023 com muitos milhares de pessoas muito inteligentes e muito qualificadas que deixam algumas pela primeira vez nas suas carreiras de estar ao serviço de uma grande corporação tecnológica. Numa visão optimista, é possível acreditar que de todo este talento emergirá algo novo e útil, mais útil do que aquilo que estivessem a fazer para o Google ou para o Facebook (fazer mais pessoas clicar em mais anúncios; colocar pernas em avatares). Seria um desenlace bem-vindo.