É inevitável. Este terceiro número da newsletter do PQ, onde explicamos e descomplicamos a notícias todas as segundas-feiras, tem de ser totalmente dedicado à guerra na Ucrânia.

Qual é o ponto de situação nesta segunda-feira?

Estamos no quinto dia de uma invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, que começou na madrugada de 24 de Fevereiro. As forças russas estão a atacar em três frentes (temos um guia com mapas em actualização permanente):

  • Uma no Norte, a partir da Bielorrússia (aliado da Rússia), passando pela zona de exclusão de Chernobil (cuja tristemente célebre central nuclear já foi tomada pelos russos), em direcção à capital Kiev. Até ao momento em que esta newsletter foi escrita, Kiev continua em mãos ucranianas e o Presidente ucraniano Volodomir Zelenskii continua lá.
  • Outra no Nordeste, directamente do território russo e em direcção a cidades como Kharkiv. Esta cidade, a segunda maior da Ucrânia, é agora palco de fortes combates entre as forças russas e ucranianas.
  • Outra no Sul, a partir do território ocupado da Crimeia (reconhecida oficialmente como parte da Ucrânia, mas anexada pela Rússia em 2014). O objectivo aqui será fechar o acesso ucraniano ao Mar Negro e ao Mar de Azov e unir este território com as zonas ocupadas de Donetsk e Lugansk, na região ucraniana do Donbass

Além destas frentes terrestres, há bombardeamentos aéreos sobre as maiores cidades do país, incluindo Lviv, já muito perto da fronteira ocidental da Ucrânia com a Polónia, e Odessa, já perto da Moldova e da Roménia.

As forças ucranianas parecem estar a resistir de forma mais eficaz do que o esperado. No entanto, a vantagem em termos de soldados e de armamento está do lado das forças russas. A Ucrânia tenta compensar a desvantagem de três formas:

  • Decretando a lei marcial (significa que a autoridade do poder civil é substituída pela autoridade dos militares) e proibindo a saída do país de todos os homens ucranianos entre os 18 e os 60 anos, que podem ser chamados a pegar em armas contra as forças russas.
  • Armando qualquer civil que queira participar voluntariamente na defesa do território. É o que explica as imagens de pessoas armadas, homens e mulheres, sem uniforme militar, que temos visto na televisão e na Internet.
  • Recebendo armas e equipamento militar de aliados, como a grande parte dos membros da NATO, incluindo Portugal (mas já vamos desenvolver este ponto).

Quais as consequências destes cinco dias de guerra para a população civil?

São muito graves. As Nações Unidas estimam que pelo menos meio milhão de pessoas já tiveram de fugir da Ucrânia nestes primeiros dias de guerra (e mais teriam saído, se não estivesse em vigor a referida proibição à saída de homens ucranianos dos 18 aos 60 anos). A União Europeia teme que, em breve, o total de refugiados pode chegar aos sete milhões (a Ucrânia tem oficialmente 44 milhões de habitantes). A Polónia, para já, é o principal destino dos refugiados ucranianos, como contam os enviados do PÚBLICO ao Leste da Europa, o João Ruela Ribeiro e o Adriano Miranda.

Quem ficou para trás está a lidar com escassez de alimentos e, sobretudo nas grandes cidades e nas frentes de guerra, muitos têm passado as últimas noites em garagens subterrâneas ou estações de metro, devido aos bombardeamentos aéreos.

Quanto a vítimas mortais, é difícil ter acesso a todos os dados neste momento e, infelizmente, vão ficar desactualizados rapidamente, mas as Nações Unidas falavam no domingo em cerca de 400 civis mortos. Quanto a baixas militares, a Ucrânia diz que a Rússia já perdeu mais de cinco mil soldados nesta invasão (Moscovo admite baixas, mas não diz quantas). Do lado ucraniano, não há um número oficial actualizado. 

Como é que chegámos aqui? 

Já explicámos o contexto histórico, político e geográfico do conflito neste vídeo do PQ, que vale a pena rever (apesar de ter sido feito antes da invasão russa), mas façamos um resumo telegráfico do que está em causa agora: 

  • Moscovo acusa Kiev e a NATO de violarem um compromisso antigo que previa que a Ucrânia seria um país militarmente neutro entre a Rússia e a Europa Ocidental. Kiev e o Ocidente argumentam que esse compromisso não existe e que os ucranianos têm o direito a escolher as suas alianças internacionais, e a Ucrânia têm-se aproximado da NATO e da União Europeia. A Rússia vê isto como uma ameaça à sua segurança.
  • Na segunda-feira passada, a Rússia reconheceu as zonas ucranianas de Donetsk e Lugansk, onde os falantes de língua russa são maioritários, como países independentes (quase todos os países do mundo continuam a considerá-las como parte da Ucrânia, tal como a Crimeia) e anunciou uma “operação de paz” para proteger estas zonas de alegados ataques ucranianos (há de facto um conflito que dura ali há oito anos e já matou três mil civis, segundo as Nações Unidas, mas não há relatos independentes de que a situação se tenha agravado subitamente nas últimas semanas).
  • No mesmo dia, o Presidente russo Vladimir Putin tinha feito um longo discurso onde apresentou a sua tese contra as actuais fronteiras da Ucrânia, argumentando que grande parte do território ucraniano foi retirada injustamente à Rússia nos tempos dos czares e sobretudo da União Soviética.
  • Na quinta-feira, e tal como a acumulação de tropas russas na fronteira indiciava há vários meses, a Rússia lançou uma operação militar muito mais vasta contra toda a Ucrânia, muito para lá da “operação de paz” em Lugansk e Donetsk que tinha anunciado dias antes.

Como estão a reagir a União Europeia, os Estados Unidos e outros aliados?

Com sanções financeiras muito pesadas, como a expulsão de vários bancos russos do sistema SWIFT (o sistema internacional de transferências, sem o qual os bancos ficam quase desligados do resto do mundo) e o congelamento das reservas do Banco Central Russo em moedas estrangeiras. O efeito prático é o de reduzir ao mínimo o comércio entre a Rússia e o Ocidente, o que atira a economia russa para uma grave crise. Só nesta madrugada, o valor do rublo, a moeda russa, face ao dólar chegou a cair 30%. 

Há também sanções dirigidas a membros do regime russo (incluindo Putin), a multimilionários próximos do Presidente e a várias empresas russas, que podem perder as suas fortunas e investimentos no estrangeiro, e o fim dos vistos gold para russos. E há bloqueios à exportação de vários produtos para a Rússia, sobretudo os que também possam ser utilizados para fins militares, como alguns tipos de químicos e de componentes electrónicos.

Além disso, a União Europeia fechou o espaço aéreo a aviões russos e vai banir órgãos de informação russos como a RT e o Sputnik, que acusa de difundir notícias falsas ou manipuladas.

A Alemanha suspendeu a abertura do gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico, por onde passaria grande parte do gás natural que a Rússia vende à Europa, o que representa um gigantesco prejuízo financeiro para Moscovo.

Paralelamente, há muitas empresas, entidades e até organizações desportivas a suspender relações com a Rússia. O Comité Olímpico Internacional recomendou a todas as federações desportivas internacionais para suspender a Rússia (e a FIFA acaba de fazê-lo). A final da Liga dos Campeões já não vai ser jogada em São Petersburgo e não vai haver um grande prémio de Fórmula 1 em Sochi em 2022. Na cultura e entretenimento, o Festival Eurovisão da Canção não vai ter participantes russos este ano. 

Para além das sanções e cortes de relações que estão a isolar a Rússia, há também decisões importantes na frente militar. Os países da NATO e da União Europeia não vão enviar tropas para a Ucrânia, pois isso seria arriscar uma guerra directa e de consequências imprevisíveis com a Rússia, mas estão a fornecer armamento à Ucrânia. Portugal é um desses países. 

E houve já outras consequências importantes. Países como a Finlândia e a Suécia, que não fazem parte da NATO, ponderam agora aproximar-se à aliança militar ocidental, o que já levou Moscovo a ameaçar Helsínquia e Estocolmo. E a Alemanha, que pouco tem investido nas suas forças armadas por motivos históricos (devido ao seu papel na II Guerra Mundial), também anunciou uma mudança total da sua política e vai passar a gastar 2% da sua riqueza anual na defesa.

Vamos ter uma guerra nuclear?

No domingo, Putin ordenou às forças armadas russas que colocassem o armamento nuclear em estado de prontidão, justificando a decisão com as sanções decretadas pelo Ocidente e com o que Moscovo entende serem ameaças expressas por líderes políticos ocidentais contra a Rússia.

É uma notícia alarmante. No entanto, há um historial de ameaças mais ou menos directas de uso de armas nucleares por parte da Rússia (que tem o maior arsenal atómico do planeta), antes e depois do fim da União Soviética. Tal como por parte de outros países, como os Estados Unidos durante a Guerra Fria, ou como a Coreia do Norte já neste século. Em todos os casos, o medo foi a verdadeira arma: os efeitos de uma guerra nuclear seriam tão devastadores que todos querem evitá-la

O que pode acontecer nos próximos dias?

É imprevisível. Esta segunda-feira, houve negociações de paz na Bielorrússia entre uma delegação russa e outra ucraniana. Ambas disseram querer um cessar-fogo, mas apresentam exigências difíceis de compatibilizar. Os ucranianos pedem a retirada dos russos de todo o país, incluindo da Crimeia; os russos insistem em exigir neutralidade militar à Ucrânia e o fim do namoro com a NATO e a União Europeia. Ou seja, a paz não é impossível, mas é pouco provável para já.

Pode também acontecer um agravamento do conflito militar. As forças russas continuam a atacar as principais cidades ucranianas (e um cenário de guerra urbana é historicamente mais mortífero do que os combates em terreno aberto). A Rússia ainda tem muitos militares e armamento pesado por mobilizar. Do lado ucraniano, começa a chegar mais armamento e vão aumentando os voluntários a combater ao lado dos soldados. 

Há também muitas dúvidas sobre qual é o objectivo final de Vladimir Putin: a ocupação total da Ucrânia e o derrube do Presidente Volodimir Zelenskii? A anexação total ou parcial do país à Rússia? Ou um ataque mais limitado, apenas para forçar a Ucrânia a ceder aos objectivos russos relativos à NATO, à Crimeia e a Donetsk e Lugansk? Ou será a Ucrânia apenas o primeiro degrau numa escalada mais grave contra outros países europeus? São perguntas que dependem de outra: quem é Putin?

Será também interessante observar o que se passa na própria Rússia. Para além de algumas manifestações anti-guerra em cidades como Moscovo e São Petersburgo, há algumas figuras na periferia do regime de Putin, sobretudo empresários, a questionar publicamente a invasão da Ucrânia. A proximidade histórica entre russos e ucranianos (milhões dos quais com relações familiares), bem como o facto de a guerra não parecer estar a correr como esperado, torna este conflito pouco popular e pode aumentar a oposição a Putin.

Por fim, estaremos atentos à questão das sanções económicas. Os castigos aplicados à Rússia e a inevitável resposta de Moscovo vão ter consequências indirectas em todo o mundo, que já se sentem no preço do petróleo e dos cereais. 

PS: no último fim-de-semana, devido aos acontecimentos na Ucrânia, não publicámos um vídeo do PQ sobre outro tema, que tínhamos preparado e que vamos guardar para um momento mais oportuno.