Cenas do Bem e do Mal

As histórias e segredos que Paula Rego conta num documentário são como as fábulas de Kafka, trágicas e cómicas ao mesmo tempo.

PRIMEIRA CENA (PENSAR COMO QUEM DESPE) — Quem vai ver o documentário sobre Paula Rego, realizado pelo seu filho Nick Willing, que está a ser exibido em Lisboa e no Porto (respectivamente no Cinema Ideal e no Passos Manuel), devia munir-se primeiro de um livro que acaba de ser editado pela Letra Livre, A Literatura e o Mal, de Georges Bataille (tradução de Manuel de Freitas). A Pintura e o Mal poderia ser o título desse documentário. E a introduzi-lo ficaria bem uma citação de Bataille: “Je pense comme une fille enlève sa robe”(“Eu penso como uma rapariga despe o seu vestido”). Do Mal como tema da obra de pintura à pintura como Mal, Paula Rego mostra-se plenamente à altura do capricho soberano da experiência artística. Como a Madame Edwarda de uma novela de Bataille, que proclama “Eu sou Deus” no momento em que mostra as partes obscenas, a artista também revela a sua parte maldita, a força luminosa da obscenidade. No extremo do seu gesto, o Bem supremo e o Mal supremo revelam-se idênticos. Paula Rego pertence àquela categoria de artistas que se parecem com umas criaturas simiescas, uns seres excessivos que, como Artaud, reclamam: “Preciso que o Mal venha ao meu encontro, sem isso não posso criar”. O segredo das histórias de Paula Rego é que elas supõem sempre o pecado original. Ouvindo-a, no fim, expondo-se perante o filho, lembramo-nos de uma carta em que Kafka conta a Felice que passou “um belo serão em casa de Max (...) a ler-lhe a minha história” e, no fim, ambos “riram muito”. A história que Kafka leu ao seu amigo Max Brod e que tanto os divertiu foi, nada mais nada menos, do que A Metamorfose. Segundo o testemunho de Brod, Kafka lia por vezes as suas “histórias” aos amigos e aos colegas, no escritório, como se elas fossem divertidas e inocentes: o trágico invertia-se em cómico. À semelhança de Kafka e das suas parábolas, também Paula Rego conta histórias para “espíritos dialécticos”. Quando o documentário chega ao fim e saímos para a rua, ficamos diante do mundo desencantado e pomo-nos a fazer comparações, cálculos, projecções. Por contraste, torna-se inevitável pensar: quase tudo aquilo que nos é servido em nome da literatura e da arte é tão higiénico, tão esterilizado, tão homogéneo, tão normalizado, tão destituído de pecado original, que só produz um ruído incómodo. De repente, “Se viesse/ se viesse um homem/ se viesse um homem ao mundo, hoje, com/ a barba de luz dos/ patriarcas: só poderia,/ se falasse deste/ tempo, só/ poderia/ balbuciar balbuciar/sempre sempre/ Só só// (Pallaksch, Pallaksch) [Paul Celan, tradução de João Barrento]

SEGUNDA CENA (DESPIR? NEM PENSAR) — Por causa dos desacatos que alguns jovens portugueses, finalistas do ensino secundário, provocaram num hotel em Torremolinos, foi um falatório durante toda a semana, uma logomaquia prodigiosa. Chegou à boca de cena um coro formado por psicanalistas escolares, psiquiatras, familialistas, humanistas, moralizadores, técnicos das relações familiares, inspectores, sexólogos, sexófobos, pedagogos, representantes das figuras perdidas da autoridade. Tudo gente experiente e adulta que avança com uma máscara inexpressiva e com o sentimento de uma missão futura: salvar a humanidade do carácter destrutivo da jovem geração, evitar que cheguem os tempos nietzschianos do “último homem”. Foi uma festa, um potlach. Não em Torremolinos, lugar triste e transparente como o vidro, mas aqui. Aqui é um sítio cheio de histórias e segredos, para uso de espíritos dialécticos, como nos revela o documentário sobre Paula Rego.        

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