Filmes de luta pela identidade

Um itinerário de resistência e revelação - um mapa do ciclo Heart Beat, dedicado à música e às artes performativas.

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Num país em que a música ocupa um papel central – através dela se conta a História dos seus povos, através dela se espalha a educação e se apela ao voto em eleições, através dela se cria um interminável fio de transmissão de pai para filho – é natural que à música caiba também um papel supremo de resistência sob a ameaça do terror. They Will Have to Kill Us First (30 Outubro, São Jorge, 18h45; 31, São Jorge, 22h00), de Johanna Schwartz, acompanha o percurso de vários músicos no movimento de fuga e exílio quando, em 2012, os jihadistas tomaram conta do Norte do Mali ao aliarem-se aos independentistas tuaregues e decretaram uma versão extrema da sharia – cuja aplicação incluía a destruição indiscriminada de todo o património que mantivesse vivo o passado ou qualquer forma de prática musical.

Perante a ameaça bastante real de ver a mão ou a língua cortadas selvaticamente como punição por tocar ou cantar em público, restava a fuga. Mas essa humilhação extrema em ter de escolher entre deixar a terra ou abdicar da liberdade é, após a intervenção militar francesa e o acordo de cessar-fogo, substituída por uma recusa em aceitar sem luta o amesquinhamento de haviam sido alvo. “Temos de deixar de ser a presa”, protesta Fadimata ‘Disco’. E acrescenta a também cantora Khaira: “Já não temos medo. Se vier uma batalha, que a travemos aqui [em Timbuktu]. Enquanto estiver viva vou fazer música.”

É comovente a defesa da vida exuberante maliana – que vai invadindo os intervalos desta batalha ferida pelo direito a uma existência livre e digna. Num outro sentido, outro dos filmes mais encantadores deste Heart Beat, In the Ocean (24 Outubro, São Jorge, 18h45; 29, São Jorge, 19h00), é também uma obra pelo direito à resistência e à constituição de uma identidade própria. No caso, o documentário do holandês Frank Scheffer (profusamente representado nesta secção, com mergulhos ainda em Varèse, Frank Zappa e na música electrónica) levanta um retrato da música contemporânea norte-americana a partir de depoimentos de John Cage, Philip Glass ou Steve Reich enquanto lugar de rejeição do seu papel de maus imitadores da II Escola de Viena (Schönberg, Berg, Webern). “Crescemos com o Chuck Berry, as bancas de cachorro quente e milhões de hambúrgueres vendidos no McDonald’s e isso está no nosso subconsciente”, alega Steve Reich. Daí o oceano (Atlântico) reclamado para o título, como fosso entre os dois continentes. Uma América a querer abraçar a sua contemporaneidade, que Scheffer ilustra com o frémito das cidades, os arranha-céus trementes e uma sociedade em ebulição transformada em música.

O duelo travado com os cânones ocidentais surge ainda no filme de Shirley Clark Ornette: Made in America (1 Novembro, São Jorge, 19h00; 3, Cinema Ideal, 22h15). Ao partir de um concerto do vanguardista do free jazz Ornette Coleman na sua terra natal Fort Worth, com um alto louvor institucional, Clark recua à pobre infância do músico, vai polvilhando o seu percurso com alguns testemunhos e regressa sempre a essa noite de consagração, em que aquilo que vemos é um reconhecimento com cheiro a naftalina, de uma classe média-alta conservadora e branca (tudo o que Ornette não é) para quem a legitimação de um músico só se faz com uma orquestra sinfónica (exactamente aquilo em que Ornette não se notabilizou). Aí reside a força de um filme que começa na segregação racial e termina pouco distante – apesar de o seu nome ter vingado num clima adverso.

Atenção obrigatória ainda para os reveladores e raros vislumbres de Brad Mehldau (27 Outubro, Culturgest, 18h45; 30, São Jorge, 22h15) para lá do brilhante executante, em que Nicolas Klotz nos mostra como os concertos a solo do pianista equivalem a tentativas de reconciliação com a mortalidade, e de Marlon Brando, em Listen to Me Marlon (24 Outubro, São Jorge, 16h15; 25, Cinema Ideal, 22h15), numa viagem ao íntimo do actor construída por Stevan Riley com base em centenas de gravações áudio realizadas pelo próprio Brando. Não esquecer ainda: a mítica e polémica encenação de Peter Brook da ópera Carmen, de Bizet, ou os retratos da fadista Celeste Rodrigues e do guitarrista Phil Mendrix, realizados por Diogo Varela Silva e Paulo Abreu.

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