Três salas de espectáculo, três destinos

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O Teatro Nacional de S. João tem uma fachada lateral coberta por andaimes. O Cinema Batalha não tem andaimes, mas é uma pena, porque isso, pelo menos, significava que não estava ao abandono. E o Cinema Águia d’Ouro tem a cara bem lavada, parece que acabou de ser inaugurado, mas de casa de espectáculos já só guarda a memória. A Praça da Batalha tem três edifícios que já serviram para ver e ouvir teatro, cinema e concertos, mas todos têm hoje vidas muito diferentes. Uma amálgama de histórias que parece ter extravasado as paredes dos prédios e ter-se apoderado da própria praça.

Isto porque, a Batalha, apesar da renovação de que foi alvo no âmbito da Porto 2001 — Capital Europeia da Cultura, tem hoje um ar bastante caótico. Há cadeiras implantadas no pavimento, onde se sentam alguns idosos, perto do trânsito que passa pelo centro da praça. O palacete do século XVIII que foi, ao longo de quase todo o século XX, a estação central de Correios, Telégrafos e Telefones, tem, tal como o S. João, a fachada coberta por andaimes e telas de protecção, enquanto vai sendo transformado num hotel. Por altura dos santos populares, instalam-se ali barracas que vendem doces tradicionais e, no meio de tudo isto, circulam turistas, de máquinas apontadas ao Teatro Nacional ou à Igreja de Santo Ildefonso, a definhar, pedindo restauro, ali ao lado.

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Passo ali à tarde, enquanto um homem, munido de um apito, se aproxima do centro da praça, fazendo soar o estridente ruído do instrumento que prende entre os dentes, dizendo nos intervalos, de braços estendidos: “As senhoras podem passar, passem as senhoras, se faz favor.” Na entrada do Batalha, há cobertores estendidos, dos sem-abrigo que fizeram daquela berma larga o seu local de pernoita. O sol vai alto, mas há duas “camas” montadas, só uma delas com o dono à vista. Por ali não se entra. Lá dentro não há teatro nem cinema.

A Praça da Batalha marca o local onde, segundo as lendas, no século X houve um confronto sangrento entre os mouros de Almançor e a população do Porto, que os primeiros venceram. No século XVIII, a muralha fernandina que ali tinha uma das suas portas, a do Cimo de Vila, foi demolida, e a praça transformou-se. Ao longo dos séculos, instalam-se ali o palacete de José Anastácio da Silva da Fonseca (o tal dos Correios, construído em finais do século XVIII e que serviu também como hospital durante o cerco da cidade), o monumento a D. Pedro V (1886) e, claro, os teatros.

O primeiro foi o Real Teatro de S. João, cuja construção se iniciou, oficialmente, a 29 de Março de 1796, após a demolição da muralha. Inaugurado cerca de dois anos depois, este teatro desenhado pelo italiano Vincenzo Mazzoneschi não é, porém, aquele que os turistas de hoje fotografam avidamente. Porque em 1908 um violento incêndio devorou o velho edifício e o Porto teve de construir um novo teatro. O arquitecto Marques da Silva foi o autor do projecto vencedor, mas as obras prolongaram-se e o novo S. João só seria inaugurado em 1920.

Nos últimos anos, andou de cara escondida, atacado por uma maleita que fazia soltar partes da fachada, ameaçando quem passeava junto ao edifício. Colocaram-se redes de protecção enquanto não aparecia o dinheiro necessário para fazer a obra, mas, em 2013, o financiamento foi finalmente desbloqueado e a fachada principal já se livrou das redes que a escondiam.

O Águia d’Ouro, hoje transformado num hotel, foi inaugurado em 1899, no local onde antes já existira um café e uma hospedaria com o mesmo nome. Por ali passou alguma música, mas sobretudo cinema, muito cinema. Até que as salas de projecção se deslocaram do centro das cidades para os centros comerciais da periferia, o cinema perdeu público e enfrentou, na altura, a concorrência dos videoclubes. O Águia d’Ouro não resistiu e fechou as portas no final de 1989. Era uma verdadeira ruína quando foi comprado, em 2008, pela empresa que o transformaria num hotel.

Sobra o Batalha. O edifício do arquitecto Artur Vieira de Andrade, projectado em 1946, está degradado, abandonado, carente de um futuro que o livre do esquecimento. Já esteve fechado, foi reabilitado, passou pelas mãos do gabinete Comércio Vivo — uma parceria da Associação de Comerciantes do Porto e do município, que não deu grandes frutos —, teve reaberturas esporádicas, mas voltou ao seu silêncio e às portas fechadas, cada vez mais velho e degradado. À espera.

Se o Batalha fosse reabilitado, se os azulejos de Jorge Colaço que ornamentam a fachada da Igreja de Santo Ildefonso fossem recuperados, se o TNSJ já não tivesse andaimes e o palácio dos Correios estivesse também liberto de tapumes e obras, a praça talvez não me parecesse tão caótica. Assim, dá alguma pena. Como se estivesse a travar uma qualquer luta interminável contra uma ruína que é só parcial, mas que parece agigantar-se. Há qualquer coisa ali a precisar de ser curada.     

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