Uma sexta-feira, num turno da manhã, em que uma das nossas doentes estava com um aparelho de suporte de oxigénio, mas que já não lhe estava a ser útil. E a médica decidiu que se ia retirar o aparelho, dando o conforto necessário à senhora para que pudesse falecer tranquila. A senhora era pianista e foi posto no telemóvel do serviço que nós tínhamos foi posto uma música de um pianista e junto da doente estava somente a médica e a enfermeira. Foi-lhe dada medicação para que ela tivesse o conforto necessário e nós todos, do lado de fora, no corredor, estávamos todos os auxiliares que estavam ao serviço e alguns enfermeiros e foi um momento assim bastante chocante porque no espaço de dez minutos aquela senhora que respirava parou de respirar. As lágrimas, para quem estava com ela, não foram fáceis de se conter, tanto a médica como a enfermeira que estava dentro. Houve colegas que acabaram por desistir e não estiveram lá aqueles dez minutos, não conseguiram. Eu consegui, estive lá até ao fim.
Lucília FrançaAuxiliar do Hospital de Santo António, Porto
Havia uma doente que me dizia:
A sua voz é a única coisa que eu me lembro daqui [dos cuidados intensivos].
Eu falava muito com ela apesar de ela estar totalmente sedada, eu estava sempre a falar com ela.
Anabela BártoloDirectora do serviço de cuidados intensivos do Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães
O senhor vinha numa situação muito grave, não havia sequer crenças da nossa parte que ele pudesse recuperar e voltar a ser o que era. E a esposa ligou e eu tive que lhe explicar isto ao telefone, que é outra coisa que ninguém deveria ter de fazer, e ela começou a chorar ao telefone e dizia-me que:
- Eu nem me pude despedir dele.
E lembro-me das lágrimas me caírem pela face, e aí ainda bem que estávamos a falar ao telefone. A verdade é que ela me pediu para lhe dizer que ela tinha ligado e, para que ele pudesse acreditar que tinha sido ela a ligar, ela disse:
- Diga-lhe por favor que foi o mô que lhe ligou.
Porque era a forma como eles se tratavam entre si. Ela dizia:
- Não é amor, nem mor, é mô.
- Está bem, pronto, então eu digo-lhe isso.
Assim que entrei no quarto, na próxima vez, disse-lhe.
- Olhe que o mô ligou-lhe e deu-lhe um beijinho.
Era uma pessoa que estava em estado praticamente comatoso, abriu os olhos, olhou para mim, sorriu, e a partir desse dia foi sempre a recuperar, sempre a recuperar.
Filipa SantosEnfermeira do Hospital Curry Cabral, Lisboa
Era uma senhora já de mais de 80 anos, com 82 anos, e eu fui lá observá-la. E eu disse à senhora:
- Olhe, este oxigénio que a gente está a fazer já não está a ser suficiente, os seus pulmõezitos estão aqui fraquitos, o seu coraçãozito também está aqui a querer uma ajudinha, e isto não vai lá sem a gente levá-la para outro serviço.
E então a senhora disse-me:
- Ahhh, mas eu nem sequer voltei a ver o meu marido, nem a minha filha.
E eu disse:
- Olhe, mas agora isso não vai dar, sabe, porque infelizmente não há visitas.
Ela cuidava da filha deficiente e do marido que já tinha demência e a senhora estava preocupadíssima porque foi o INEM buscá-la, a ela e ao marido, e teve de deixar a filha com os vizinhos. A filha que era a sua bebé, embora já tivesse cinquenta e não sei quantos anos.
Luís PauloMédico do Hospital Sousa Martins, Guarda
Era um dia bastante crítico, era um caos. Estavam 14 ambulâncias, todas em fila, para ir à urgência. Este médico dirige-se à minha frente virado aos vidros todos, olha para o exterior, não se importou se estava alguém na sala, a nossa sala estava cheia de pessoas a olharem para aquela tragédia, e ele simplesmente curva-se ligeiramente e pega na sua mão direita e faz: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Adília CordeiroAssistente técnica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Foi impressionante o que a sociedade civil conseguiu fazer para nos apoiar. Eu lembro-me de uma vez que uma senhora, mãe de um dos nossos doentes, ligou a dizer assim:
- Eu queria levar umas garrafas de água para a pediatria, daquelas pequenas para vocês poderem beber na hora e deitar fora. Porque não podíamos correr o risco de as conspurcar.
- Onde é que as devo entregar?
Eu disse que podia entregar então na urgência da pediatria. Ela disse:
- Não, não, é que são muitas.
Veio entregar 1890. Eu decorei: 1890 garrafas de água.
Fátima MenezesDirectora do serviço de pediatria do Hospital de São Sebastião, Santa Maria da Feira
Nós costumamos habitualmente ir aos quartos conversar com os doentes de manhã, perguntar se está tudo bem com eles. E uma auxiliar alertou-me que ele estava muito triste, que não tinha roupa, e eu meti-me mais ou menos com ele.
- Então, senhor Manuel?
- Ai, estou muito triste, veja lá, não tenho roupa para vestir, estes pijamas do hospital...
E eu fiquei a pensar no assunto, mexeu um bocadinho comigo. Então, fui fazer uma comprinhas para o senhor. Pijaminhas, cuecas, meias, umas pantufas e fui oferecer-lhe. O senhor coitadinho começou a chorar e disse:
- Olhe, não sabe o quanto significa este pijama para mim, menina.
Desculpe lá, eu estou um bocadinho comovida porque me estou a lembrar do velhinho, coitadinho. [Disse] para mim:
- A menina vai ficar sempre, sempre no meu coração.
O senhor, passados três ou quatro dias, teve alta e mandou a auxiliar chamar-me para eu ver que ele ia com o pijama que lhe tinha oferecido para casa.
Ana Alves GonçalvesAssistente técnica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Foi o marido de uma senhora que nós cá tivemos, de 30 e poucos anos, que me dizia assim:
- Olhe, doutora, eu deixei a minha mulher à porta da urgência, só fui estacionar o carro e nunca mais a vi.
A senhora foi directamente para a sala de emergência, da sala de emergência veio para aqui e foi internada logo nos cuidados intensivos.
Anabela CarvalhoMédica do Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães
Eram os últimos dias de Março e uma das senhoras não estava a sentir-se muito bem naquele dia. Depois de lhe prestar os cuidados de higiene, incentivei-a a levantar, uma vez que já tinha sido operada há algum tempo. Insisti um bocadinho e sentei-a na cadeira. Mas a senhora pouco tolerou, quis voltar logo para a cama. E, quando a deitei, a senhora agarra-me na mão e conta-me, assim de forma assim muito desesperada:
- Ai, senhora enfermeira, eu nunca mais vejo o meu Carlitos! Ai, o meu Carlitos, que nunca mais o vou ver!
As palavras da senhora parece que me queriam dizer alguma coisa. Provavelmente, a senhora nem sabia da existência do vírus porque nós também não queríamos alarmar... Foi o início de tudo. A senhora foi para uma unidade covid. E, claro, nunca mais viu o Carlitos. O Carlitos, que era o filho com quem ela vivia, o Carlitos que já era um senhor porque estamos a falar de uma senhora com idades ali já na ordem dos oitentas e muitos.
Isabel SilvaEnfermeira do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Reuni-me com os internos do ano comum. Os que depois ficaram a trabalhar directamente na urgência foi um grupo de oito internos que disseram:
- Doutora Adelaide, nós estamos consigo. A doutora tem 60 anos, portanto não vai para a frente de combate, não vai para lado nenhum. Nós fazemos o trabalho que quiser que façamos e a doutora dirige-nos e diz o que quer que nós façamos.
Eu fiquei comovidíssima com aquilo.
Adelaide CamposDirectora do serviço de urgência do Hospital Sousa Martins, Guarda
Era um doente prestes a morrer e com grande falta de ar, ainda hoje me comove muito. Agarrei-lhe nas mãos, disse-lhe para ter calma e para ir respirando fundo. E o doente, mesmo assim com muita dificuldade, diz-me, e referiu o meu nome, porque ele tratava-me pelo nome, e disse-me:
- Guida, estou a afundar-me, mas tenho a sorte de estares ao meu lado, vou calmo e em paz.
E apertou-me as mãos e morreu. Foi o meu segundo doente, e é das coisas que ainda hoje me custa e que me marca.
Margarida VazAssistente operacional do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
A tristeza, ou pior ainda, a revolta, quando já tivemos de tirar ventiladores a utentes de 60 anos para pôr nos de 50, já aconteceu. E virem a chorar, os meus colegas virem a chorar cá para fora, porque condenaram as pessoas, as pessoas acabam por falecer porque a verdade é que tínhamos que fazer escolhas.
Davide CoutinhoEnfermeiro-chefe do Hospital Sousa Martins, Guarda
Era um senhor assim idoso. Ele entrou muito rezingão, muito negativo. Passado uns dias, começou-se a afeiçoar a nós, conseguimos com que ele começasse a comer, a brincar connosco, mas a coisa depois começou a piorar. Cada vez que sentia que lhe estava a faltar o ar ele ficava logo em pânico, [dizia] dêem-me a mão, dêem-me miminhos. Pusemos um cadeirão mesmo ao pé dele para lhe ficar a dar a mão até ele adormecer. Tanto médicos, como auxiliares, como enfermeiros, todos nós fazíamos isso. E ele pedia aos médicos por favor para o salvarem, para não o deixarem morrer, que ainda tinha muita coisa para fazer. Ele até a mão para o senhor do lado esticava, para não se sentir sozinho. Há um dia em que eu chego lá para fazer o turno da noite e estava o cartão de óbito em cima do balcão e deu-me um ataque de choro assim qualquer coisa que já não acontecia há muito tempo.
Ana CostaAssistente operacional do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Eu estive com a equipa, quase já com um ano de experiência, que se preparava para entrar para o internamento na noite de Natal. Vi sair da zona limpa, totalmente equipados, com os seus fatos integrais, máscara e viseira, seis, todos iguais, apenas se distinguiam pelo nome que desenhamos à pressa nas costas dos equipamentos para nos conhecermos. Eu fiquei a pensar que aquela gente que alocámos ao covid, toda esta equipa de seis pessoas, tinha filhos pequenos, era noite de Natal, de certeza que um pai e uma mãe adora ver os filhotes abrir os presentes de Natal, jantar com a família, celebrar esta festa da família e eles entraram para uma zona, fechada, hermética, desconhecida, longe de casa, longe dos filhos e dos presentes e eles gostariam de estar em casa, mas de facto não podiam.
Júlio SalvadorEnfermeiro supervisor do Hospital Sousa Martins, Guarda
As famílias dos doentes covid agradecem muito mais o nosso trabalho, dizem que sabem que nós estamos a fazer o melhor, interagem muito mais, mesmo não vindo cá. Pelo telefone são muito mais comunicativos, contam-nos o que se passa com eles a nível do agregado familiar, o que é que andam a fazer, tudo o que lhes acontece lá em casa eles contam-nos, querem contar, mesmo que saibam que a gente não vai dizer ao doente e que o doente está a dormir, mas eles contam-nos a nós como se estivessem a falar com o doente ao lado.
Rute MilheiroMédica do Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães
Eu tenho apanhado os doentes quase maioritariamente já todos entubados, mas uma senhora que ainda está connosco, e talvez seja a que mais me marcou, porque a senhora entra cá em ventilação espontânea, a falar. Tinha oportunidade de falar com o filho, mas ela não gostou do aspecto dela, disse que não queria falar com a família, que não queria que o filho a visse assim. No dia seguinte, a doutora decidiu e explicou-lhe que tinha que ser entubada e a senhora, nem sei explicar, mas o olhar dela disse tudo. E ainda falou com a doutora, a perguntar se ela ia sobreviver ou se ia acordar. E a gente não tem palavras para lhe dizer nessa altura, dizemos que vai ficar tudo bem. É o lema.
Sandra OliveiraEnfermeira do Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães
Lembro-me perfeitamente de ter uma doente, de cerca de sessenta anos. Esta doente, durante aquele quinze ou vinte minutos em que esteve em agudização até descer para os cuidados intensivos, perguntou-me inclusive que horas eram porque tinha uma encomenda que ia chegar e que nós não nos esquecêssemos de ir buscar a encomenda. E na altura, no meio daquela confusão e daquela azáfama, eu achei que ela estava a falar de bens pessoais. E, portanto, na altura descansei-a e disse-lhe:
- OK, são dez e meia, a encomenda chega às onze, nós vamos buscar, não se preocupe.
A doente desceu para os cuidados intensivos, foi ventilada, acabei o meu turno de quatro horas lá dentro e quando saí para a área limpa [riso] deparei-me cá fora com aquilo que tanto angustiava a doente numa altura em que todas as preocupações dela deveriam ser outras e não essa. E, portanto, quando cheguei cá fora tínhamos várias caixas de bolas de Berlim que a doente tinha pedido para nós.
Cátia GonçalvesEnfermeira do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
O pai esteve internado primeiro, e faleceu lá e depois o filho acabou por ficar internado também no nosso internamento covid. Nós temos duas alas e ele na altura até nos pediu se o podíamos trocar de quarto para não ficar na ala onde o pai tinha falecido. Tinha sido na semana anterior.
Paula NevesDirectora do internamento covid-19 do Hospital Sousa Martins, Guarda
Eu já não tenho mãe e vivo ao lado do meu pai, que tem 87 anos. E sempre fomos muito próximos, sempre fui eu que cuidei do meu pai, embora ele ainda seja independente. Um dia eu estava-lhe a contar que tinha sido transferido o nosso primeiro doente da enfermaria para o Hospital Geral dos Covões e ele estava um bocadinho consternado e um bocadinho assustado. E o meu pai, com as lágrimas nos olhos, virou-se para mim e disse:
- Filha, eu é que tenho esta idade, mas eu tenho tanto medo de te perder, minha filha.
Ofélia ForteAssistente operacional do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Tive uma situação muito específica de um casal que esteve aqui internado, marido e mulher, em que estavam os dois instáveis, portanto, iam ser os dois transferidos para as unidades de cuidados intensivos. Foram os dois transferidos numa manhã, mas nós não tivemos tempo para eles se despedirem. Eu transferi um, depois fui transferir outro, eles não se conseguiram ver nestes entretantos e depois o senhor acabou por falecer e, portanto, nunca mais se viram.
Filipa LopesEnfermeira do Hospital de Santa Maria, Lisboa
Na altura o senhor João, ele estava na cama cinco, esteve ventilado, não é, e depois destubaram, tiraram o tubo e então estava a dar o Sporting, que ele era do Sporting, e virámos a cama, e ele esteve a ver então o Sporting. A gente estava a falar com ele e ele mal falava, estava com muita falta de ar e depois veio o médico lá de dentro e disse:
- Senhor João, temos muita pena, mas temos que o entubar novamente.
E ele respondeu:
- Deixe-me só acabar o meu Sporting, visto que ele vai ganhar a taça e eu acho que nunca mais vou ver o meu Sporting jogar.
Sandra ReisAssistente operacional do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Ele, apesar daquela falta de ar toda, pediu se era possível ir lá fora porque tinha... tinha... [choro] algo a tratar. Eu perguntei que assuntos eram e ele disse:
- Olhe, tenho a minha filha a viver comigo mais o meu neto, e eu precisava de ir à câmara para pedir autorização para que a minha filha ficasse na minha casa, onde eu tenho a casa alugada, que é uma casa social porque a renda era menor e ela provavelmente terá de ser despejada de lá porque nós não tratamos de nada antes de eu entrar.
Eu infelizmente, apesar de compreender, eu disse:
- Olhe, ó senhor F., vocês não pode sair daqui. Não consegue arranjar maneira de passar uma procuração ou algo?
As visitas estavam proibidas, mas nós facilitávamos, se fosse caso disso. E ele nunca chegou a tratar de nada e passado uns dias teve de ser entubado endo-traquealmente e acabou por falecer, infelizmente para mim numa altura em que eu não estava cá e, claro, fiquei muito triste.
Ismael CarvalhoEnfermeiro do Hospital de Santo António, Porto
Ele era um médico jovem, por isso é que aquilo me impactou tanto. E ele tinha estado infectado e estava a regressar ao serviço. Estávamos todos ali e as colegas estavam-lhe a dizer:
- Então? Como é que foi, como é que estás, como é que te sentes?
E ele estava a dizer justamente isso:
- Pronto, às vezes fazia a comida, ou mandava vir, mas passava a maior parte do meu tempo deitado porque havia momentos em que eu nem força tinha para escovar os dentes.
Helena MedinaAssistente técnica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Tive lá uma mãe de três filhos internada na Medicina 2 Covid, rapariga jovem, com os seus quarenta e cinco. Então eu vou de manhã, vou dar a volta aos doentes e falo com ela e pergunto-lhe porque é que ela estava a chorar. E ela disse-me, pronto, que era muito difícil estar ali. Eu tentei dizer que vai ficar bem, que vai passar o covid, que eu quando chegasse a casa ia pôr uma velinha por ela para ela poder recuperar e ir para casa. Só que entretanto eu soube que ela tinha um aneurisma. Através do covid, ela soube algo ainda pior.
Jacinta ValenteAuxiliar do Hospital de Santo António, Porto
Não falava e mal abria os olhos quando lhe perguntava como é que ele estava, quando lhe explicava que precisava de lhe fazer mais uma pica para ver como é que estava o oxigénio. E, numa tentativa de o distrair da dor que lhe poderia estar a causar durante o procedimento, falava e tentava interagir. Mas foi assim que percebi que era um benfiquista daqueles mesmo à séria, um benfiquista ferrenho. Portanto, durante cerca de cinco dias comunicámos assim, eu falava-lhe do seu clube e o senhor abria muito os olhos, acenava e via-se que respondia, que estava receptivo. Mas muitas vezes cheguei a questionar-me se ele me ouviria ou perceberia realmente.
Na sexta-feira dessa semana, entrei no quarto e o senhor respondeu-me com: Lembro-me dos seus olhos. E lembro-me de acabar o turno muito mais feliz, não só porque o senhor estava a melhorar. Ouvi aquela frase e senti de volta todo o carinho que também lhe dei e que me encheu completamente o coração.
Mariana TrindadeMédica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Uma neta, cujo avô também estava numa situação muito grave, e permitimos-lhe uma visita e a neta acabou por partilhar comigo como é que tinha sido o contágio ou como ela achava que tinha sido o contágio, em casa. E ela tinha uma culpa enorme porque não tinha contacto com o avô há vários meses, há mais de seis meses, e como ela tinha feito um casamento em que não tinha convidado ninguém, mas fez um almoço com o avô e ela achava que tinha nesse almoço que o avô tinha ficado infectado. Ela também ficou, mas o avô com uma evolução muito grave. O avô acabou por melhorar.
Juliana SáMédica do Hospital de Santo António, Porto
Foi um momento que nos marcou muito aqui na enfermaria porque era um senhor já com 70 e tal anos. Tinha uma pneumonia pela infecção por SARS-CoV-2. Houve ali um período que esteve mesmo muito mal. Passou-se o fim-de-semana e eu quando regressei numa segunda-feira, tinha visto que ele tinha passado muito bem o fim-de-semana. Quando cheguei ao pé dele, disse-lhe:
- Então, bom dia, como é que está? Vi que passou bem o fim-de-semana, está a melhorar!
E ele, muito seco, muito triste disse:
- Eu não estou bem, estão neste momento a enterrar a minha esposa.
Ouvi aquilo e fiquei congelada. Ficamos assim a olhar para ele, e eu disse:
- Então? Que se passou?
E ele disse-me que a esposa tinha morrido pela mesma infecção no fim-de-semana, noutra enfermaria, e que estava naquele momento a ser enterrada sozinha com o coveiro e que ele não estava e que os filhos também não estavam porque estavam emigrados no Canadá.
Daniela MaradoMédica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
E lembro-me de uma senhora que tinha algum grau de demência e um cancro muito avançado e estava internada num serviço de cirurgia e a senhora estava perdida. E fizemos uma conferência familiar com as duas filhas que moravam [num local] algo distante do Porto. Estavam as duas filhas, uma ao lado da outra no iPad, e a senhora, que falou com as filhas, interagiu, é interessante, mas no fim disse:
- Eu quero esta fotografia para a minha sala.
Elga FreireMédica do Hospital de Santo António, Porto
Dentro dos doentes que eu tinha naquele dia, tinha um senhor que me foi questionado pelas colegas se o senhor estaria minimamente acordado para ler uma carta que vinha endereçada a ele pela esposa. Nesse dia, e nos dias anteriores também, tinha estado um pouco mais, pronto, adormecido, não reagia à nossa voz. Eu disse que era um bocadinho difícil que ele fosse ler a carta e disse-lhe:
- Olhe, eu vou ler esta carta que a sua esposa mandou para si e espero que goste.
Dizia coisas do género:
- Eu sinto muito a tua falta, quando estou deitada na nossa cama estou constantemente a esticar o braço à tua procura, tenho uma mágoa muito grande de não te encontrar durante a noite na nossa cama.
E no final desta última frase, em que a senhora dizia que tinha imensas saudades dele, o senhor esboçou, muito ligeiro, mas esboçou um sorriso.
Acabou por ser um momento um bocado emotivo, não para o senhor em si porque ele também voltou ao mesmo estado neutro que estava, mas para mim acabou por ser um momento extremamente emotivo porque eu nunca pensei, em momento algum, que o senhor fosse reagir à minha leitura da carta da esposa.
Helena GalveiasEnfermeira do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Fui ver uma senhora que estava internada com covid há cerca de uma semana, tinha uma pneumonia grave, tive de ligar à filha a explicar a gravidade do quadro. Aquele telefonema custou-me um bocadinho porque a filha disse-me que não podia, não podia ir despedir-se da mãe porque lá em casa estavam todos em isolamento. Tinham tido contacto com a senhora, era um contacto de risco, e eles não podiam... não se podiam despedir. A senhora faleceu ao fim de dois ou três dias e nenhum deles, nenhum dos filhos, nenhum dos netos, pôde ir ao funeral.
Inês GrenhaMédica do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
O que mais me marcou nesta altura da pandemia foi quando um utente, que era surdo, mostrou o cartão e nós [pensamos] ''tudo bem, falamos um bocadinho mais alto". Só que entretanto ele estava muito muito agitado porque era um procedimento que é invasivo. Eles só levam anestesia local, de maneira que ele iria sentir sempre. E a minha função ali é ir acalmando o doente, dando a mão ou explicando o que vai acontecendo, mas nesta altura de pandemia nós já não temos essa possibilidade. Neste caso foi mesmo necessário dar-lhe as mãos, só que ele perguntava:
- O que é que se passa, o que é que é isso?
E eu retirei a máscara e fui dizendo os procedimentos que íamos fazer. Imediatamente ele acalmou-se, fez um gesto tipo ''ok''. No fim, claro, o senhor chorou e é óbvio que também nos veio as lágrimas aos olhos porque ele disse que nunca ninguém tinha tido o gesto tão simples como baixar a máscara e afastar-se para lhe explicar algo.
Susana AlmeidaAssistente operacional do Hospitalar e Universitário de Coimbra
O que me chocou muito no Natal realmente foi que entravam famílias inteiras mãe, pai, filhos na urgência pelo próprio pé e que depois já não se voltavam a ver, muitos porque ficavam em contextos de enfermaria diferentes, uns acabavam por morrer e não se despedir. Uma das minhas doentes numa das minhas entradas estava a chorar, encontrei-a no quarto a chorar, e questionei o motivo de ela estar a chorar. Então tinha recebido um telefonema a dizer que o marido, que tinha entrado com ela na urgência, tinha acabado de falecer. E naquele momento nós não sabemos o que dizer porque ela não consegue olhar para a minha cara, a minha mão não lhe diz nada porque tem três pares de luvas. Eu cheguei-me à beira dela e fui simplesmente dizer que ia correr tudo bem e que ela tinha de ficar boa para regressar para junto dos filhos para se todos confortarem uns aos outros. Mas eu sabia que aquilo que eu estava a dizer podia não ser a realidade.
Cristiana AlmeidaEnfermeira do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Ele queria falar com um filho e ele teve de ser entubado rapidamente depois de chegar lá e não eram permitidas nesse momento as visitas. E eu lembro em concreto de as colegas terem chorado por sentirem que ''isto não está certo, não podemos estar assim porque as pessoas têm situações por resolver". Este senhor queria falar com o filho e elas ficaram chocadas por saberem que o senhor ia ser entubado a qualquer momento e que aquela situação ficou pendente. Foi um bocado um ponto de viragem que a partir daí passamos a permitir visitas em situações concretas.
Sónia SousaEnfermeira do Hospital de Santo António, Porto
Um doente internado, por volta dos seus oitenta anos, na altura em que os cuidados intensivos estavam todos lotados. Optámos por lhe pôr outro tipo de tratamento que ele volta e meia retirava e de todas as vezes que ele retirava nós conseguíamos ouvir as máquinas a apitar e conseguíamos ir ter com ele. Ele sabia exactamente as horas das nossas passagens de turno e foi exactamente numa dessas passagens de turno que aconteceu. Ele retirou o dispositivo e eu decidi começar por um outro doente e, quando me dirigi a ele, encontrei-o já sem vida. Estava numa posição com as mãos em cima do tronco. Tinha retirado todos os dispositivos, incluindo aquele que nos poderia alertar para um valor que poderia não estar bem, e encontrei-o e assim e não conseguimos fazer nada para reverter a situação. E ele escolheu, ele escolheu e sabia perfeitamente quando seria a melhor altura. Se ele tivesse tido um atendimento numa unidade de cuidados intensivos, tinha um enfermeiro ali, permanentemente, a tomar conta dele, e se calhar isto já não acontecia.
Lígia PereiraEnfermeira do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
Eu perdi o meu pai no hospital onde eu trabalho e tenho de voltar ao hospital todos os dias e é difícil. E eu tenho a sorte de trabalhar num laboratório, eu sou técnica de análises clínicas, eu nem sequer tenho contacto com doentes. A minha experiência é mesmo... é sentir na pele a perda de alguém que é extremamente importante para nós e para a nossa vida. Perder um pai é extremamente difícil e nesta fase pior ainda porque uma pessoa ficou privada do contacto físico, não é? Quer dizer, os abraços, no meu caso, perderam-se para sempre. A maior parte das pessoas tem abraços em stand-by, o meu perdeu-se para sempre. Eu consegui despedir-me do meu pai, nem toda a gente tem essa sorte. Acaba por ser um bocadinho apaziguador neste processo. Eu tive a oportunidade de me despedir dele.
Patrícia AchandoTécnica Superior de Diagnóstico e Terapêutica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Lembrei-me de um momento que foi precisamente no dia de Natal. No dia 24, eu estive a trabalhar todo o dia e estava a acompanhar uma doente que lá tínhamos internada. Estive todo o dia com essa senhora, era uma senhora de 72 anos e muito preocupada com as netas, duas netas pequeninas de quem ela cuidava. No dia 24 ela foi entubada. Foi difícil porque a única preocupação dela eram as netas, não é. E ele sempre me pedia:
- Senhor enfermeiro, por favor, cuide muito de mim porque as minhas netas ainda precisam muito de mim.
Nós tivemos oportunidade de telefonar e ela teve a oportunidade de falar com as netas e de explicar o que se passava. Ela foi entubada e pronto, a verdade é que não voltou a acordar e não voltou a falar com as netas.
Aramide GomesEnfermeiro do Hospital de Santo António, Porto
Um pai que estava aqui internado connosco e que precisou de ser ventilado. E nesse dia ele estava à espera de uma notícia relativamente a um dos seus filhos em relação ao resultado da zaragatoa e se a zaragatoa fosse negativa ele podia fazer um tratamento de que estava à espera. E o senhor estava muito ansioso com esta situação e infelizmente já não conseguiu saber do resultado. O senhor foi ventilado e esteve em unidade alguns dias. Quando regressou ao serviço, ele trazia a mesma preocupação e então ele pediu um telemóvel a um dos doentes que estava ao lado da cama dele, ligou de imediato à filha para perguntar:
- E então e o teu irmão?
Estela EscadaEnfermeira-chefe do Hospital de Santa Maria, Lisboa
Quando nós vamos fazer as rondas aos doentes, para ver aqueles que já estão mais debilitados, e encontrámo-los sem vida. Para nós profissionais também é cruel, ver estas coisas assim é brutal, mesmo, é brutal.
Jacinta ValenteAuxiliar do Hospital de Santo António, Porto
A enfermeira pediu-me ajuda para pôr o doente a fazer uma videochamada com a família. Depois a esposa pediu-me se podia inserir os filhos na videochamada e eu disse que sim e ele esteve a falar com a esposa e com os filhos. Depois eu acabei o meu turno, vim-me embora, e no outro dia quando lá cheguei soube que o senhor tinha falecido durante a noite, ou seja, o senhor praticamente despediu-se da família pela videochamada que eu o ajudei a fazer.
Alexandrino CoelhoAssistente operacional do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa
Era um senhor com 90 anos, com muitas doenças crónicas, já semi-dependente. A única coisa que eu consegui perceber quando lhe consegui tirar a máscara e consegui falar mais próximo de um doente que não se conseguia fazer ouvir no meio da confusão reinante é que ele tinha sede, tinha muita sede, e ninguém conseguia ouvir aquele apelo. Portanto, quando dei conta, entre tirar aquelas luvas para ir ver um outro doente e não sei quê, a minha máxima ambição assim intensiva foi encontrar um copo de água para dar ao senhor. Compreendi que aquele meu gesto se calhar era um bocadinho fútil, mas era a maneira que eu assim encontrei para tentar fazer alguma coisa por aquela pessoa.
Irene AragãoMédica do Hospital de Santo António, Porto
Um casal que estava internado no nosso serviço. Eu cheguei lá para cuidar deles, administrar medicação, e no final de tudo, a esposa virou-se para mim e disse-me:
- Vocês são tão bonitas, aqui no serviço são todas tão bonitas.
E eu disse:
- Oh, dona A., então? Como é que me pode dizer uma coisa dessas se quase nem nos vê, que nós estamos com estas fatiotas, parecemos umas astronautas.
E ela disse-me, quase a chorar:
- Não, eu vejo os vossos olhos e isso basta, porque os vossos olhos mostram-me o vosso coração.
Luzia AlvesEnfermeira do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
A nossa unidade efectivamente não tinha. não tínhamos televisão e às vezes eu questionando mesmo os doentes a perguntar-lhes:
- Mas vocês não querem mesmo uma televisão?
E eles [diziam]:
- Não porque dá só coisas da doença e doentes já estamos nós.
E passaram-nos a pedir se tínhamos o jornal, as coisas todas, percebe? O que tivéssemos para eles lerem E passamos a trazer os nossos jornais, as nossas revistas temporalmente completamente desfasadas, mas o que interessava era isso, era a sopa de letras para entreter, era o jornal A Bola porque havia muitos homens. Foi a forma que encontrámos de, obviamente os doentes que estavam com a consciência para isso não é, de os motivar e de os fazer passar as longas horas que passaram connosco.
Elizabete NeutelMédica do Hospital de Santo António, Porto
Quando fomos ver a dona Maria, ela não queria falar. Estava deitada na cama, muito fechada em si, olhos fechados. E nós pedimos licença para falar com ela e ela disse:
- Não, agora não me apetece, voltem mais tarde.
Fomos ficando e ela disse-me espontaneamente:
- Tenho falta de ar, não parece, mas tenho.
Pronto, tentamos resolver essa parte, fomos-lhe colocar um penso de medicação e tocámos-lhe. Quero acreditar que foi mais que o toque físico porque naquele silêncio ela espontaneamente falou e contou-nos um pouco da sua história. E disse-nos que:
- Eu é que deixei as coisas avançarem, é que deixei a doença andar. Sabe, eu sentia-me muito mal, mas ignorei. Já tive filhos tarde, sabe, e eles ainda eram, ainda são muito novos, queria que crescessem mais um pouco.
E nisto nós perguntamos que idade é que tinham os filhos. E ela disse-nos: 27 e 29.
Margarida SantosEnfermeira do Hospital de Santo António, Porto
Eu quando estive nos cuidados intensivos, isto começou em Fevereiro, tivemos a primeira doente. Esteve entubada cerca de três semanas, a piorar... Entretanto a senhora recuperou do nada e no fim, quando a senhora saiu, lembro-me que o médico me chamou e fizemos um TikTok onde a senhora dança. E isso é... é uma coisa que nos enche de alegria, podermos ver essa situação assim. Saiu de lá a dançar e isso para nós é uma dádiva.
Sónia NobreAssistente operacional do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
Ele acordou tetraparético, totalmente dependente e vê-se rodeado de profissionais com máscaras e com e escondidos atrás de fatos, daqueles fatos tipo astronauta O doente não percebia o que se estava a passar, não percebia o porquê de não ter visitas, esteve muito agitado e ansioso. Inicialmente nem estávamos a perceber o porquê de tanta ansiedade, de tanta agitação e foi a família que realmente quase lembrou, que realmente o doente quando tinha adoecido, em Fevereiro, a covid-19 ainda era uma ameaça, não era uma realidade em Portugal e, portanto, ele tinha acordado, entre aspas, num mundo diferente, que ele não conhecia.
Isabel BarbedoMédica do Hospital de Santo António, Porto
Houve umas semanas que aquilo era um terror, em que os velhinhos nos diziam assim:
- Olhe, deixe-me morrer, deixe-me morrer porque eu sei que com esta doença já não vou ver mais a minha família.
Isto fez muita confusão nessa faixa etária. A solidão para eles aquilo... eles preferiam morrer, eles diziam-nos mesmo.
Marta SilvaAssistente operacional do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho
No pico, ali em Dezembro e Janeiro, foi muito difícil porque nós tínhamos o serviço cheio e afectou muito a minha relação com os meus filhos, tanto que tive necessidade de recorrer a um psicólogo, quer eu quer os meus filhos. Porque estava a notar que havia aí algo que era preciso ser trabalhado. Inclusive, a minha filha no psicólogo, uma das frases que ela disse foi: Eu tenho saudades daquilo que o meu pai era.
Bruno PintoEnfermeiro do Hospital de Santo António, Porto
A dona Maria esteve aqui cerca de duas semanas internada connosco. Estava a poucos dias de ir para casa e a dona Maria, num dia normal, pediu-nos para passar música e para dançarmos um bocadinho com ela. E foi o que eu fiz. Na nossa cabeça estava tudo delineado para que aquele caso corresse bem, só que passados alguns minutos tivemos uma triste notícia que o filho tinha morrido nas urgências, aos 42 anos, com um enfarte. Fez-se o funeral do filho, a dona Maria não viu, não assistiu, não se despediu, não... não nada.
Rita SousaAssistente operacional do Hospital Pedro Hispano, Matosinhos
No caso daquela senhora fomos a fazer conversa no trajecto, que ainda era longo, e a senhora só dizia, no final e já quase a chegar ao serviço onde iria ficar internada, que gostava de nos ver sem máscara, de poder olhar para mim, no momento era comigo que ela estava a dizer isso, de poder olhar para mim sem máscara e poder conhecer o meu rosto mais tarde e poder voltar para agradecer. É um exemplo de compaixão que as pessoas têm, mas precisaram muitos deles, a maioria deles, de passarem pelo pior para poderem valorizar também o trabalho de quem está na área da saúde e de quem esteve na frente.
Carlos CarvalhoAuxiliar do Hospital de Santo António, Porto
Ainda hoje lembro um turno que fiz, de tarde, em que não havia camas de intermédios nem de intensivos e havia doentes na enfermaria para internar lá. E nós, na enfermaria, ou avançávamos com máquinas que não conhecíamos ou eles morriam. E nós olhávamos uns para os outros e pensávamos: "O que é que fazemos? Vamos assumir?". E eu lembro-me de ter dito a uma colega:
- Ou fazemos isto ou eles morrem [choro].
Tive um [doente], que por acaso era meu colega, mas podia não ser, que estava na última cama do serviço e que precisava de um ventilador e não havia. E ele tinha noção, estava consciente, orientado. E agarrou-me a mão e disse-me:
- Colega, não me deixes morrer [choro].
E eu ainda hoje me lembro da cara dele a pedir-me isto.
Goreti VerdeEnfermeira do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
Decidimos então fazer o casamento de um senhor, com 39 anos, que infelizmente tinha covid, mas não faleceu de covid, faleceu há uns dias. Então nós decidimos fazer-lhe o casamento, porque o senhor queria casar lá casou. Dizia que gostava de sair dali, que tinha muita força para viver, só que, de um momento para o outro, claro, as coisas começaram a piorar e ele entretanto faleceu.
Cristiano PintoAuxiliar do Hospital de Santo António, Porto
O momento que mais me marcou foi no primeiro dia, quando a minha chefe chegou à Cirurgia Homens, onde é o meu local de trabalho, e teve que dividir o pessoal porque teve que se abrir a contingência e, entretanto, calhou-me a mim. Fiquei muito apreensivo e com receio, claro, na altura tinha uma filha com três anos e um filho com treze e o medo maior era trazer o bicho para casa, não é?
Francisco ReiAssistente operacional do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho
O que mais me marcou foi o aperto da mão dos doentes. A comunicação deixou de ser de uma forma tão verbal e passou a ser outro tipo de comunicação. O que eu notei mais e o que me foi tocando mais ao longo destes últimos tempos foi mesmo o aperto das pessoas. As pessoas agarraram-me muitas vezes as mãos em forma de agradecimento pelo que estávamos a fazer.
Fátima FernandesEnfermeira do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
Eu estava num quarto a mudar um saco e chegou lá uma enfermeira, olhou para mim e abraçou-se, deu-me um abraço e pronto, chorámos muito as duas. Bastou só isto, não foi preciso falar sequer.
Fernanda VieiraAuxiliar do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)
Uma senhora, assim perto dos 70 anos, com uma doença por covid de agravamento progressivo, e que quando chegou o momento de lhe dizer que ia ser transferida para a unidade de cuidados intensivos me perguntou se ia morrer disto. E a verdade é que nós não mentimos aos doentes e não há resposta certa para esta pergunta.
Sofia NunesMédica do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho
Estavam os dois internados no mesmo serviço. Nós não sabíamos que eram marido e mulher, nem eles sabiam que estavam ali tão perto. Entretanto, descobrimos e juntámo-los. Lembro-me que uma altura fui fazer tarde e a senhora não queria jantar e eu até lhe disse:
- Meu amorzinho, vamos comer que olhe, o seu marido está aqui ao lado e vai ficar triste, se você não comer.
Ela levantou a cabecinha, viu o marido, e pela primeira vez e eu consegui dar-lhe tudo o que tinha a ementa da comida. Entretanto o senhor piorou, faleceu, e dois dias depois a senhora faleceu também de tristeza, de falta do marido, só chorava.
Sónia NobreAssistente operacional do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
Considero um momento marcante desta pandemia quando uma médica me questiona a possibilidade de uma visita a um doente em fase terminal pela sua família, esposa e filhos. Pede-me também para que fizesse a escolha de qual deles iria realizar a visita. Não consegui fazer essa escolha, entraram os três.
Ana Isabel RibeiroEnfermeira do Hospital de São João, Porto
Uma doente que, entretanto, começou a dessaturar, e nós temos sempre um radiozinho para passar música no corredor. Estava a passar uma música específica naquela altura e ela olhou assim pela porta e só se virou:
- Eu também queria ir para a vossa beira, posso? [riso]
E eu:
- Olhe, só se vier com a garrafa de oxigénio e ainda assim acho que isto não vai correr bem.
E ela:
- Ai, mas eu queria tanto. Venham para a minha beira.
E pronto, e lá fomos nós para a beira dela e estivemos um bocadinho na brincadeira com ela.
Patrícia RodriguesAssistente operacional do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
Um doente que infelizmente foi começando a ficar cada vez mais deprimido, começou a recusar a alimentação, como se estivesse a desistir da vida. Entretanto, a esposa também foi internada e houve a possibilidade de colocá-los juntos na mesma enfermaria. Infelizmente, ela teria Alzheimer. Ele sabia que a esposa estava ao lado. Infelizmente, os dias foram passando e o senhor [estava] cada vez mais debilitado e acabou por falecer. Até pensámos que a senhora não se tinha apercebido, não é, já que nem se comunicava, não sabíamos se sabia que o marido estava ao lado dela. Mas, quando retirámos o senhor da enfermaria, uma colega reparou que a senhora tinha deitado uma lágrima. Depois, passado algum tempo deixou ela de se alimentar, acabou por falecer também poucos dias depois.
Raquel OliveiraAssistente operacional do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
Estava a contactar uma senhora que estava internada em infecciologia, e tinha a sua filha também internada nos cuidados intensivos do mesmo serviço. Eu a dar-lhe uma boa notícia, a dizer que a filha já estava a sair dos cuidados intensivos para vir junto dela, para a mesma enfermaria, ela muito zangada comigo me dizia que est ava a ver na televisão, em determinado canal, que a filha tinha morrido. Foi difícil até à altura em que a filha chegou junto dela à mesma enfermaria.
Eduardo CarquejaDirector do serviço de psicologia do Hospital de São João, Porto
Lembro-me perfeitamente de um doente com mais de 70 anos que quando eu o estava a observar me agarrou nas mãos antes de eu ir embora e pediu-me:
- Por favor, faça tudo o que puder que eu quero voltar para casa e ver a minha família.
Eu reparei mesmo nos olhos dele que ele estava muito assustado. E às vezes nós pouco conhecemos da doença e ficamos a pensar:
- Eu vou fazer tudo o que posso, mas não posso prometer que vai ficar bem, entende?
Queríamos fazer mais e às vezes não podíamos porque ninguém podia. Não era porque nos faltava meios ou conhecimento, simplesmente não podíamos fazer mais.
Raquel AfonsoMédica do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
Era um senhor que era um pescador e era um senhor que tinha um cancro do cólon avançado. Eu despedia-me sempre deste doente a dizer ''até breve, capitão''. E houve uma vez, das últimas vezes que estive com ele, o doente acabou por dizer, quando eu disse ''até breve, capitão'', ele disse-me:
- E a doutora é a mestra do meu navio.
E eu perguntei-lhe:
- E qual é o nome do navio?
E o doente respondeu:
- Vamos à Vida.
Manuela BertãoMédica do Hospital de Santo António, Porto
Um casal de idosos, um casal com quem pude contactar durante algumas semanas, que foi também internado na nossa unidade covid e que decidimos juntar e que todos os dias de manhã podia observá-los de mãos unidas, a mão dele sobre a dela, e todos os dias me dizia:
- Podemos estar de mãos dadas porque esta é a minha esposa.
E assim morreu, de mão dada.
Catarina CarvoeiroMédica do Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo
Ouvi assim uma frase engraçada da parte de um senhor que me diz que um velho que morre é uma biblioteca que arde.
André AlmeidaMédico do Hospital Curry Cabral, Lisboa
Eu estava num serviço que não era o covid e fui dispensada para ir para o covid. Já se falava no ''vai correr tudo bem" e no "vai ficar tudo bem", já era o slogan e aí disseram-me ''vai ficar tudo bem''. Toda a gente dizia isso. Depois, entretanto, fiquei doente, também me disseram isso. Entretanto o meu sogro foi internado porque a minha sogra infectou também. E também ouvi essa frase. Essa é uma frase que realmente é dita no sentido para acalmar a ansiedade, mas... não sei como é que hei-de explicar, a mim causou-me um certo transtorno, mas é assim, eu também sou obrigada a usá-la para acalmar os outros.
Helena LucasAssistente operacional Hospitalar e Universitário de Coimbra