Os ciclistas podem fazer tudo o que lhes apetecer?

Os ciclistas podem fazer tudo o que lhes apetecer?

Os ciclistas podem fazer tudo o que lhes apetecer?

Resposta simples: tudo não. Mas podem fazer mais do que pensa. As redes sociais tornaram-se campos de batalha: ciclistas e automobilistas culpam-se mutuamente e reclamam o maior direito a utilizar a estrada. Desde 2019, houve quase 5000 acidentes com bicicletas em meio urbano, 16 mortes e 171 feridos graves.

Basta abrirmos uma publicação sobre bicicletas ou ciclovia, seja nas redes sociais ou no site de um jornal, e o cenário é sempre o mesmo: automobilistas e ciclistas trocam acusações e insultos, falam de falta de civismo e de incumprimento da lei, e, vistas bem as coisas, ninguém se entende. Quantos dos argumentos utilizados de parte a parte se apoiam de facto na lei?

O PÚBLICO reuniu algumas das “certezas” apresentadas em comentários e submeteu-as ao teste da lei. Podem as bicicletas andar fora das ciclovias? Devem os ciclistas circular encostados à berma? E o capacete, o seguro e a matrícula, são obrigatórios?

Para esclarecer, consultámos o Código da Estrada, falámos com Mário Alves, especialista em mobilidade urbana, e apanhámos boleia de Dinis Correia, que todos os dias usa a bicicleta nos seus trajectos por Lisboa e que, por entre razias e ciclovias menos bem conseguidas, nos faz sentir na pele o que é andar de bicicleta na capital. Vamos a isso?

Fotografia de perfil de Carolina Pescada

carolina_pescada As ciclovias são obrigatórias para os utilizadores de bicicleta? Podem os ciclistas andar na estrada?

Mário Alves, especialista em segurança rodoviária e mobilidade, não tem dúvidas: “As bicicletas são um veículo desde sempre. Por isso, têm o direito a usar a estrada e as ruas.” E o que nos diz a lei é precisamente isto: as únicas estruturas viárias em que os utilizadores de bicicleta não podem circular são as autoestradas e algumas vias rápidas, proibições que estão devidamente assinaladas.

Dinis Correia, morador em Lisboa, utiliza a bicicleta nas suas deslocações há mais de nove anos. Quando começou, ainda não havia muita gente a fazê-lo. “De início, a ideia de andar na estrada parecia sempre um bocado perigosa. E as ciclovias que existiam na altura eram particularmente mal planeadas, porque tinham sido todas feitas com um objectivo mais virado para o lazer”. Não eram uma alternativa viável à estrada, conclui.

Desde então, tem acompanhado com satisfação o crescimento da rede de ciclovias da cidade, mas reconhece falhas nas infra-estruturas.

Para Mário Alves, o grande problema das ciclovias são as intersecções, ou seja, os momentos em que os vários modos de transporte se têm de cruzar: bicicletas, carros, peões. Aliás, explica o especialista em mobilidade e transportes, na maior parte dos países entre 60 a 80% das colisões de bicicletas com automóveis acontecem em intersecções. Falamos de cruzamentos, mudanças de direcção, fins ou interrupções de ciclovia.

Em Portugal não há muitas estatísticas, mas o especialista não tem dúvidas de que a realidade não é muito diferente. Porque é que isto acontece?

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carolina_pescada Se nem todos os utilizadores de bicicleta usam as ciclovias, isto quer dizer que elas são desnecessárias?

Mário Alves responde com humor: “Não se construiu a ponte sobre o Tejo porque se reparou que havia muita gente a nadar para o lado de cá”. É o conceito de procura induzida.

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carolina_pescada É uma questão de tempo até que as ciclovias sejam mais utilizadas?

Não necessariamente. “Antes de mais, é importante perceber que os utilizadores de bicicleta gostam de ciclovias, quando estão bem feitas. Criam uma certa calma, um certo ‘relax’, e o utilizador sente-se mais à vontade, não tem de estar sempre alerta”, explica Mário Alves. Se não são mais utilizadas, adianta, é porque ou não estabelecem rotas funcionais ou porque não transmitem segurança ao utilizador.

Para o especialista, é fulcral desconstruir a ideia – muito difundida geralmente por políticos e por pessoas que não andam de bicicleta, sublinha – de que as ciclovias são a panaceia e aquilo de que os ciclistas precisam para ter segurança. “Isso não é assim. Porque mesmo em países como a Holanda ou a Dinamarca 80% das ruas e das vias não têm ciclovias.”

Pedro Homem de Gouveia, arquitecto especialista em segurança rodoviária em meio urbano, e coordenador até Novembro de 2019 do Plano Municipal de Segurança Rodoviária de Lisboa, defende que a criação de ciclovias que segregam as bicicletas dos outros modos é uma solução adequada e muitas vezes necessária para cerca de 20% das ruas e estradas de cada cidade. “Aquilo que a experiência de várias cidades europeias demonstra é que irmos só de ciclovia em ciclovia é a maneira mais lenta de conseguirmos tornar o andar de bicicleta seguro. Uma ciclovia não resolve tudo”, explica.

E por que não? Haverá sempre momentos em que os modos terão de se cruzar. E, quando isso acontece, quem vai de bicicleta terá de lidar com quem anda de carro, e quem anda de carro terá de lidar com quem anda de bicicleta. “Muitas vezes, a segregação do tráfego de bicicleta faz com que os condutores de carro se esqueçam de que têm de compartilhar o espaço. Isto não é um julgamento moral que vá lá por educação. É uma questão de perigo estrutural”, explica o arquitecto. “É preciso garantir que quando a bicicleta sai da protecção da ciclovia ela é protegida por qualquer outro dispositivo de acalmia de tráfego”.

Desde 2019, a Polícia de Segurança Pública (PSP) registou perto de cinco mil acidentes com bicicletas em meio urbano. Destes, 1266 aconteceram em 2022, dos quais resultaram duas vítimas mortais, 35 feridos graves e 1034 ligeiros.

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carolina_pescada Como garantir segurança quando carro e bicicleta utilizam a mesma estrada?

Um carro e uma bicicleta têm, por razões óbvias, ritmos diferentes, o que faz com que, muitas vezes, compartilhar a estrada se torne complicado. Para o carro pode ser aborrecido estar cingido à velocidade imposta pela força humana de quem conduz uma bicicleta; para o velocípede pode ser intimidadora a impaciência e proximidade de alguns automóveis.

Muitas situações de perigo acontecem precisamente durante ultrapassagens – algumas, como nos mostra Dinis Correia, o nosso ciclista lisboeta, “perfeitamente desnecessárias”.

Quais são as regras para uma ultrapassagem segura? Fomos consultar o que diz o Código da Estrada, mas antes de o revelarmos, queremos pôr o leitor à prova.

Seleccione a alínea correcta.

Quando ultrapasso um ciclista, devo:

Qualquer ultrapassagem, relembra Mário Alves, exige que o veículo que está a ultrapassar ocupe a via adjacente, seja ela de circulação no mesmo sentido ou em sentido contrário. É que, segundo as definições legais, numa via de trânsito só se pode inscrever uma fila de veículos. E isto é válido também para ultrapassagens de bicicletas a bicicletas.

Para além de passar para a via adjacente, o Código da Estrada é claro: o automobilista deve certificar-se de que “guarda a distância lateral mínima de 1,5 metros e abranda a velocidade”. “Não é ‘ou, ou, ou’”, sublinha Mário Alves. “Temos de abrandar, e passar para a via adjacente e deixar um metro e meio”. As três regras em simultâneo são extremamente importantes para não assustar o ciclista, para não o deixar inseguro e inclusivamente para que, se ele tombar ou se atrapalhar, não haja um sinistro.

É também muito importante que os ciclistas ocupem sem pruridos o seu lugar na via, diz Dinis Correia. Quando começou a usar a bicicleta como o seu principal meio de transporte, sentiu, mais do que nunca, o seu espaço invadido. Depois de sofrer dezenas de “razias” – porque tinha a tendência de se encostar à direita – decidiu que tinha de ocupar o seu lugar na estrada.

“Não nos devemos sentir pressionados [pelos carros] nem achar que a pessoa que vai atrás está chateada porque não consegue ir mais rápido. Temos de pensar que quase sempre é possível ultrapassar, e, quando não é, regra geral não será um percurso muito extenso: ‘É só até eu chegar ali acima, ou até acabar esta rua’”, explica.

Com a experiência, foi conseguindo sacudir cada vez melhor este pensamento, herdado da ainda generalizada ideia de que a estrada pertence aos carros. “Nós também podemos usar a estrada. É importante ganharmos todos um bocadinho mais esse à-vontade e essa confiança de perceber que a estrada também é nossa”.

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carolina_pescada Os ciclistas são ou não obrigados a andar à direita, encostados à berma?

Se olharmos para a versão actualizada do Código da Estrada, podemos ler que os ciclistas devem circular “pelo lado direito da faixa de rodagem” – sendo que uma faixa de rodagem pode ter uma ou mais vias – “conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes”.

Na versão anterior, que vigorou até 2013, o texto dizia também que os ciclistas deviam circular “o mais próximo possível das bermas ou passeios”, mas essa informação foi retirada aquando da revisão da lei, em 2014. Por isso, resumindo, os ciclistas devem circular pelo lado direito da faixa de rodagem, mas não, não são obrigados a circular junto à berma – sendo até encorajados a distanciar-se dela para sua segurança.

Mário Alves foi um dos responsáveis pela revisão de 2014 do Código da Estrada. Durante quase dez anos, conversou com os deputados, fez apresentações com PowerPoints, e o resultado foi “uma legislação que é das melhores da Europa”, assume com orgulho.

Para além de já não ser obrigatório os ciclistas circularem junto à berma, foi introduzido o conceito de utilizador vulnerável: “peões e velocípedes, em particular, crianças, idosos, grávidas, pessoas com mobilidade reduzida ou pessoas com deficiência”, como se pode ler no artigo 1.º do Código da Estrada (CE), as definições legais.

A actualização do CE que vigora desde 2014 permite também aos ciclistas a possibilidade de andarem a par, desde que não façam congestionamento de tráfego. Como se pode ler no ponto 2 do artigo 90.º do CE: “Os velocípedes podem circular paralelamente numa via, excepto em vias com reduzida visibilidade ou sempre que exista intensidade de trânsito, desde que não circulem em paralelo mais que dois velocípedes e tal não cause perigo ou embaraço ao trânsito”.

Acertou na pergunta sobre as regras da ultrapassagem? Queremos continuar a testar os conhecimentos do leitor.

Seleccione a alínea correcta.

Num cruzamento, a bicicleta perde sempre prioridade, mesmo apresentando-se pela direita

Se tirou a carta antes de 2014, provavelmente acreditava que a resposta certa era "Verdadeiro". E, se a pergunta tivesse sido feita antes de 2014, de acordo com o código 32º do Código da Estrada, teria razão. Mas este foi outro dos aspectos que mudou com a revisão desta lei. As bicicletas regem-se desde então pelas mesmas regras de prioridade que os outros veículos. E num cruzamento sem sinalização, apresentando-se pela direita, têm prioridade.

Nas caixas de comentários de notícias sobre sinistros e acidentes entre carros e bicicletas, a obrigatoriedade do uso do capacete é muitas vezes mencionada, bem como a necessidade de os velocípedes terem seguro e – esta menos frequente – matrícula. Voltamos a pô-lo à prova.

Seleccione a alínea correcta.

Quando é que a utilização do capacete é obrigatória?

Bom, esta é daquelas que não tem uma resposta clara – e quase que podia ser um exemplo de uma pergunta com rasteira num exame de código. Segundo o artigo 82.º do Código da Estrada, a resposta certa é a alínea B: quando o condutor ou passageiro vão num veículo com motor (motociclos, triciclos, bicicletas, trotinetas e dispositivos de circulação com motor eléctrico).

No entanto, em Dezembro de 2018, depois de a PSP ter aplicado várias coimas a utilizadores de veículos eléctricos da rede Gira por circularem sem capacete, a Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL) e a Câmara Municipal de Lisboa (CML) advertiram que, segundo a sua interpretação, a utilização de capacete não era obrigatória.

Após se reunirem com a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), ficou esclarecido: nem em bicicletas eléctricas nem nas trotinetes eléctricas o capacete é obrigatório, apesar de ser recomendado.

Seleccione a alínea correcta.

E no que diz respeito ao seguro e à matrícula? São obrigatórios para os ciclistas?

Acertou? É verdade, não são obrigatórios. Já foi necessária em Portugal uma licença camarária, mas, actualmente, nem seguro nem matrícula são obrigatórios. Oiça a explicação de Mário Alves.

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carolina_pescada É verdade que os ciclistas não pagam impostos?

Muitos dos comentários que encontramos nas redes sociais afirmam que os ciclistas têm menos direito a andar na estrada por não pagarem impostos. Entendemos que em causa esteja o pagamento (ou não) do Imposto Único de Circulação (IUC). Mas para que serve, afinal, o IUC?

Este imposto, que os automobilistas pagam, serve para pagar a deterioração decorrente do uso das vias e para compensar a emissão de CO2 dos automóveis. Sabendo isto, é matemático: a utilização de uma bicicleta não tem consequências negativas para o ambiente, e uma vez que a deterioração das vias depende do peso do veículo, a deterioração que uma bicicleta causa é reduzida, para não dizer nula.

Assim sendo, não se justifica que os utilizadores de bicicleta paguem o IUC – nem esse pagamento dá mais direito aos automobilistas de circular na estrada.

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carolina_pescada Os ciclistas precisam de obedecer aos semáforos?

Outro tópico que também causa muita celeuma nas caixas de comentários é a relação dos ciclistas com os semáforos, variando entre perguntas como “Porque é que eles ultrapassam a fila para se colocar à frente dos carros?” e críticas gerais ao incumprimento da paragem obrigatória no vermelho. Precisam ou não os ciclistas de obedecer aos semáforos?

A resposta é simples: sim. Há muitas razões por que alguns ciclistas ignoram a semaforização, uns por preguiça, outros por desconhecimento do Código da Estrada, outros simplesmente por negligência, explica Mário Alves, acrescentando que, de facto, esses casos são de lamentar.

Mas há também aqueles que, apesar de pararem nos sinais vermelhos, retomam a marcha ainda antes de o semáforo ficar verde – para todos os efeitos, legalmente, passando um sinal vermelho.

Mário Alves refere-se a um estudo do departamento de tráfego de Londres que, apesar de não ter sido publicado, foi tornado público por uma notícia do inglês The Times, em 2007. O título era forte: “Mulheres ciclistas ‘arriscam a vida’ ao obedecer a semáforos”.

Segundo o estudo, 86% das mulheres que morreram na estrada em Londres, entre 1999 e 2004, tinham colidido com um pesado. Os dados contrastam com os 47% relativos aos homens nas mesmas circunstâncias.

As conclusões retiradas marcavam a importância de os ciclistas fazerem por ser vistos para a sua própria segurança. Também por isso – para responder a outra questão feita muitas vezes nas redes sociais – muitos ciclistas optam por se colocarem à frente da fila de carros, quando param num semáforo.

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carolina_pescada O que falta para que o uso da bicicleta fora da ciclovia seja mais aceite em Portugal?

Para Mário Alves, a questão vai além do civismo. Diz-nos inclusivamente que esse é um mito muito utilizado, nomeadamente pela classe política. Dizer-se que já se fez tudo a nível de infra-estrutura, que Portugal já investiu muito em infra-estruturas, é culpar os portugueses, e isso, para além de não ser justo, não é realista.

“As infra-estruturas – as ruas, as estradas, etc. – falam com o utilizador do automóvel. Se forem bem desenhadas, o utilizador de automóvel, como é óbvio, corresponde”. Dá-nos um exemplo: em Portugal, os raios de viragem das intersecções são muito largos. “Quando fazemos uma viragem com um raio de viragem mais curto, os carros tendem a reduzir a sua velocidade. O gancho à direita já tende a não acontecer, porque a velocidade é menor”.

Isto não isenta o automobilista de responsabilidade, nem de qualquer tipo de culpa, sublinha Mário Alves. Mas as infra-estruturas têm de ser feitas de modo a que “perdoem os erros que é natural que os humanos cometam”. É a filosofia base da chamada “visão zero”: “Não é aceitável que haja sequer uma morte na estrada e terá de ser a infra-estrutura a responsável pelos bons comportamentos e não o contrário.”

Em 2017, uma resolução de Conselho de Ministros estabelecia como objectivo “zero mortos e zero feridos” na estrada até 2020. Era o PENSE 2020 - Plano Estratégico Nacional de Segurança Rodoviária. Mas a dois meses do final do prazo, em Outubro de 2020, só 35% do plano estava executado. Os objectivos transitaram assim para a estratégia de segurança rodoviária do país da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária para a nova década, a Visão Zero 2030. Prevê alterações às infra-estruturas e à sua utilização, como medidas de acalmia de tráfego, diminuição de limites de velocidade, redução de automóveis nas cidades e maior fiscalização a infracções, mas também acções de sensibilização e formação.

O conceito de visão zero não é novo; surgiu na Suécia há mais de 20 anos. Foi adoptado, por exemplo, em Pontevedra (Espanha), Oslo (Noruega), e Helsínquia (Finlândia), e com bastante sucesso, tendo as três conseguido alcançar a meta de zero mortes e zero feridos pedestres nas cidades em 2019.

Mais do que dar segurança aos utilizadores de bicicleta, aquilo que muitas cidades europeias têm feito é uma redistribuição do espaço público, “que durante o século XX foi completamente apropriado pelo automóvel”, explica Mário Alves.

As nossas cidades têm, neste momento, entre 70 e 80% do espaço dedicado às vias automóveis e ao estacionamento, adianta o especialista. Uma redistribuição do espaço público – menos vias automóveis, passeios mais largos e mais árvores e espaços verdes – não seria benéfica nem traria segurança apenas a quem anda de bicicleta, mas a todos nós: ciclistas, automobilistas e peões, dos mais pequenos aos mais graúdos.