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A história do estranho traje que escondia as mulheres dos Açores

O capote e o capelo, parte do traje tradicional açoriano, cobriam integralmente a figura feminina. O escritor Raul Brandão comparou-o, em 1926, a um "fantasma negro e disforme".

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“A gente segue pelas ruas desertas e, de quando em quando, irrompe duma porta um fantasma negro e disforme, de grande capuz pela cabeça”, escreveu Raul Brandão, a 16 de Julho de 1926, ao pisar o solo da Ilha do Faial, nos Açores, pela primeira vez. O escritor portuense, que percorria então as ilhas e redigia, em simultâneo, as notas de viagem que dariam corpo à obra As Ilhas Desconhecidas, referia-se à capa e capelo açorianos, o traje feminino local que considerou conferir “um grande carácter” às terras dos Açores.

Se por fora Raul Brandão via uma “monstruosa” figura, como adjectivou no capítulo “Ilha Azul”, no interior adivinhava esconder-se “um ser delicado e loiro (…) que saltita em passo de ave condenada àquele pesadelo”. A descrição é agridoce, como talvez fosse a relação das mulheres açorianas com a pesada e ocultadora vestimenta tradicional.

O traje azul escuro ou negro, que envolvia todo o corpo feminino, era composto por duas peças. O capote, “feito de um pano magnífico que dura vidas”, descreve Brandão, cobria o corpo dos ombros até aos pés; e o capelo, que envolvia a cabeça, era forrado a cânhamo, para dar consistência, e era suportado nos ombros por um arco de osso de baleia – um detalhe profundamente açoriano, uma vez que a baleação foi, durante séculos, um dos principais meios de subsistência nas ilhas. A indumentária de lã passava de geração em geração, escreveu: “– Este já foi de minha avó – diz-me uma rapariga.” Integrava o dote das mulheres açorianas e havia mesmo quem o usasse como vestido de casamento.

O traje era, segundo o escritor, tão “cómodo” como “monstruoso”: “Mulher que precisa de ir à rua de repente pega nele e sai como está”, escreveu. E se ela desejasse, passaria incógnita. “Só pelos pés se distingue”, notou.

Em todo o arquipélago se usou o traje que apresentava ligeiras diferenças no corte consoante a ilha. No Faial, o capelo era aquele que, projectado para a frente, mais encobria o rosto. O conjunto mais comprido era o de São Miguel. Na Terceira, usava-se uma saia preta e um manto que cobria apenas da cintura para cima e que tinha capuz forrado a papelão, para dar consistência.

Permanecem, até hoje, dúvidas quanto à origem do traje. Se por um lado há quem aponte para uma importação da Flandres por conta dos poucos milhares de flamengos que habitaram os Açores nos séculos XV e XVI, por outro há quem adivinhe que se tratasse de uma adaptação dos mantos e capuchos que se tornaram moda nos séculos XVII e XVIII, em Portugal. A questão da origem desbota, no entanto, diante da importância assumida pelo traje nas nove ilhas do arquipélago até cerca de 1930, década em que caiu em desuso.

O Museu da Baleação de New Bedford especula que um dos motivos pelos quais o traje terá sido adoptado nos Açores poderá estar relacionado com a "protecção" das mulheres da ilha contra os marinheiros que, após anos no mar, desembarcavam nas ilhas e procuravam companhia feminina.

Uma outra hipótese levantada pelo mesmo museu estaria relacionada com o cultivo abundante da planta pastel-dos-tintureiros, a partir da qual se produzia um corante azul forte que, nos Açores, se tornou num produto de forte exportação. Os longos e vistosos trajes, muitos deles tingidos desse azul particular, circulariam para chamar a atenção dos comerciantes estrangeiros. E um dos argumentos que sustenta esta tese é o surgimento dos tintos sintéticos, na década de 1930, altura em que, coincidentemente, o capote e capelo perderam popularidade.

Se por um lado agasalhava – e bem, segundo relatos –, por outro tapava e ocultava as formas femininas; se permitia que a mulher andasse incógnita, por outro lado também era um símbolo de status quo. Certo e seguro será unicamente afirmar que, ao longo dos séculos, se tornou um símbolo açoriano, uma peça para sempre associada à identidade cultural e social dos Açores.

Imagem do site da Freguesia de São Sebastião
Instituto Cultural de Ponta Delgada
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