Problema? Qual problema? História de uma adicção

Se antes não admitia que era alcoólica nem queria entrar em recuperação, minimizando durante uma vida inteira a minha adicção, hoje sei que sou e serei uma alcoólica em recuperação. De cabeça erguida.

Foto
Francescoch/Getty Images
Ouça este artigo
00:00
13:55

Bebi a minha vida, cantando e rindo, chorando e sonhando, afogando em álcool tudo aquilo que não queria sentir e amplificando ao máximo o prazer que queria tirar das horas, dos dias e dos anos que foram passando. E quem não?

Só quando caí de joelhos, sem forças para levantar os braços, quanto mais sair de casa, é que admiti que a minha vida já não tinha qualquer beleza ou sentido. Não tentei morrer, mas pensei nisso. Não tentei parar de beber, mas pensei nisso também. De resto, não tentei nada, a não ser arrastar-me para a cama desfeita, sem equilíbrio para me despir ou lavar os dentes, tendo como único pensamento o de evitar uma queda na sala. E foram muitos os dias, em que eu me fui deixando ficar, anestesiada, no fundo do meu poço frio e escuro.

Mas não foi sempre assim. Aliás, foi o oposto. Foi uma vida inteira sempre a querer luz e mais luz, evitando percalços, transpondo barreiras, contornando obstáculos e somando conquistas. A garrafa sempre esteve lá, a minha fiel companheira que nunca me deixou ficar mal e de quem eu nunca desconfiei até ao dia em que percebi que o álcool tinha imposto um poder absoluto sobre a minha vida.

Infância

Sou uma sobrevivente. Não me lembro de estar às portas da morte, mas os meus pais sempre me falaram do milagre, em forma de antibióticos, que me salvou de uma meningite aguda que me ia fulminando aos três anos. Cresci, a mais nova de três irmãos, cara de anjo com estrabismo em olhos verdes, protegida e amada como um ser precioso e único que poderia nunca ter sido.

Pai, mãe, irmãos, primos, tios e a avó Albertina, todos estiveram lá para me dar aquilo a que se chama uma infância feliz, livre de preocupações, traumas ou ambições desmesuradas. Mimada, fazia por ser ainda mais a mais querida, a mais elogiada e a mais indispensável. Chegava lá através dos afectos, nunca da perfeição. Até porque este último nunca foi um valor que me tenha sido incutido ou imposto.

Durante os anos da escola primária, o que me era pedido pelos meus pais é que chegasse a casa sem queixas dos professores e sem ossos partidos. As brincadeiras com os rapazes levavam a uma coisa e a outra. Se fui coleccionado mazelas e chamadas à directora é porque ia contrariando o meu lado feminino que, mais ou menos subtilmente, me ia sendo “sugerido” pelos adultos que estavam a tratar da minha educação.

Maria-rapaz, gostava de berlindes e de jogar à bola e não gostava de saias nem de bonecas. Gostava mais de dançar nas festas “alegres” dos crescidos do que nas festinhas de aniversário das outras crianças. Gostava mais da liberdade da praia, do campo ou do recreio do que o espartilho do bibe cor-de-rosa ou o horror da Matemática. Não havia espaço para zonas cinzentas na minha alegria de viver.

A primeira cerveja

Já no liceu, numa escola frequentada pelos filhos de uma elite de esquerda que não queria ter nada que ver com a religiosidade imposta pela maioria dos colégios privados, fui reforçando a visão do mundo que tinha do alto dos meus 11 anos: tudo é mais interessante do que estar sentada numa sala de aula a lutar contra o sono e a contar os minutos até ao toque para o intervalo.

E assim aprendi a jogar matrecos e a andar de acelera, aperfeiçoei o meu futebol e todos os desportos que envolvessem uma bola e/ou uma equipa, reforcei o meu inglês precoce muito graças à música e poesia dos Beatles e aproveitei o facto de ser inteligente e curiosa, para andar sempre por perto de miúdos mais velhos ou de adultos que me validavam, me estimulavam e me ensinavam tudo aquilo que não me dava vontade de bocejar.

Nunca fui de fazer muitas asneiras, nem de me meter em confusões ou pancadarias. A minha necessidade de ser aceite, de pertencer ao grupo, de provar a minha maturidade e de seduzir manifestava-se de forma mais “adulta”. E assim, a chegar aos 13 anos, chumbei. Já tinha bebido a primeira cerveja no café em frente à escola e perdido a virgindade em casa de um rapaz loiro, repetente e mais velho do que eu.

Seguiu-se o purgatório. Três anos num colégio da Opus Dei, só para raparigas com direito a missa diária, saia, camisa e mocassins e professoras que vieram dar como provada a minha teoria de que não se descobre nada de jeito dentro de uma sala de aula. Literalmente, a vida infeliz e sofrida daqueles anos em que a única coisa que aprendi foi odiar Deus estava lá fora, longe daquela escola, daquela farda e daquelas miúdas betas e beatas.

Se bebi nesses anos, não me lembro quando nem quanto, como também não me lembro de muitas coisas e amizades que necessariamente fiz no recreio e depois das aulas. Mas claro que bebi, muitas vezes na companhia dos adultos, dando ares de intelectual precoce, “enfant terrible” de cigarro na boca a querer discutir a obra de Hemingway ou a dançar noite fora nas suas festas de fumo e álcool.

Foto
Enric Vives-Rubio (arquivo)

Terminado o longo castigo, faço os últimos anos de liceu numa escola pública, cheia de gente de todos os tipos, vestida à moda que encaixava cada um no seu grupo. Um rápido olhar de falcão pelo enorme pátio de recreio e o meu zoom de caloira foca-se numa malta vestida de preto, gabardines abaixo dos joelhos, franjas elaboradas e uma evidente inaptidão para estar ao sol. Um grupo deslocado, inadaptado e claramente inalcançável para uma maria-rapaz que dificilmente abdicaria dos seus ténis Nike a favor de umas DrMartens. Tornaram-se os meus melhores amigos.

Mais uma vez longe das salas de aula, vieram as tardes e noites de tertúlia, de trocas de livros, de descoberta de poetas, de muita música, de partilha excitada de novas sensações e paixões, de dores que não sabíamos que tínhamos e de prazeres que estávamos sedentos de experimentar. E eu era uma esponja.

Fui crescendo entre iguais nas noites do Bairro Alto. Primeiro nas tascas, depois nas discotecas. Primeiro sem drogas, depois com a cocaína e o ecstasy, sempre de copo na mão, dançando tudo aquilo que havia para dançar dentro dos padrões do nosso grupo.

Se os outros eram paneleiros e fufas, nós descobrimos que éramos andróginos, tal como o David Bowie. O conceito adequava-se melhor aos tempos, à discoteca Frágil e ao nosso estatuto de alternativos. Conquistei, com a ajuda do álcool e da poesia, a minha primeira namorada. E depois mais uma. E ainda outra. Até chegar ao dia em que, atingida por uma paixão dolorosa e não correspondida por uma mulher mais velha, dei o nome à coisa: eu era lésbica e muitos dos meus amigos rapazes eram homossexuais.

Mantive-me perto do meu grupo durante os anos da faculdade. As nossas noites eram sempre melhores do que os meus dias. Continuávamos a beber a vida e os copos como se não houvesse amanhã, ou melhor, como se o amanhã fosse melhor do que os nossos sonhos.

Da parte que me toca, trabalhei para o meu amanhã, baldando-me às aulas, fazendo directas de estudo com o copo na mão e indo com a cabeça vazia ou baralhada para as aulas ou para os testes. Terminei o curso reafirmando, do alto da minha sobranceria, que as médias escolares eram o que menos interessava para medir uma pessoa como eu, culta, inteligente, curiosa e sedutora.

Nos meus primeiros empregos, as descobertas, as conquistas e as noitadas continuaram, movidas a álcool e drogas. O copo, sempre meio cheio, nunca me deixou ficar mal. Era um porto seguro, que me dava confiança e fazia de mim uma pessoa mais forte e mais capaz. Já as drogas, fui-as abandonando a pouco e pouco. Pressenti o descontrolo e reafirmei-o ao ver, já longe do meu grupo, vários amigos a resvalarem para o abismo da heroína e para aquilo que eu achava serem vidas sem felicidade nem futuro. Alguns morreram.

Tudo a ganhar

E o que se seguiu? Um emprego de sonho, a mulher da minha vida e uma garrafa de Famous Grouse sempre à mão.

Foi só quando comecei a trabalhar como estagiária num jornal é que percebi, sem dúvidas ou hesitações, que queria escrever e salvar o mundo. Aprendi a fazer cada vez melhor a primeira, ao mesmo tempo que ia acumulando frustrações por não conseguir fazer a segunda.

Comecei no fim da minha rua e acabei no fim do mundo. Escrevi sobre os anos da sida, que varreram vidas de toxicodependentes e homossexuais antes de começarem a varrer vidas de toda gente, incluindo a de uma criança sul-africana que conheci em Durban. E quanto mais injustiças e guerras havia, mais eu sentia que o meu dever era acabar com elas.

Trabalhei com urgência, com raiva, com prazer, com dor e com amor, sem nunca conseguir impor-me o distanciamento emocional necessário para não “levar o trabalho para casa”. Escrevi e bebi até chegar ao ponto em que não conseguia escrever mais. Ao fim de 23 anos, culpei tudo e todos para negociar a minha saída do jornal como uma inevitabilidade. Sobrava-me a arrogância, uma indemnização no banco e o amor incondicional de uma mulher.

E brindes não faltaram desde o dia em que beijei pela primeira vez aquela que foi a primeira e única namorada que apresentei aos meus pais. Sobre ela não me quero alongar muito. Apenas dizer que construímos uma vida feliz e plena, que temos um filho adorado e adorável, e que preservamos ainda hoje uma cumplicidade e amizade únicas, que foram crescendo ao longo dos anos. Já não estamos juntas, depois de uma separação amigável justificada pelo distanciamento cada vez mais acentuado dos planetas em que cada uma de nós vivia.

Foto
David Clifford (arquivo)

Problemas? Eu não tinha problemas, tinha desafios. Era assim que eu olhava, embriagada, para a minha vida a aproximar-se dos 50 anos, seguindo o meu caminho sem ter consciência ou lucidez para admitir que, se não tinha perdido tudo, já tinha perdido o principal: o meu desígnio como jornalista, a mulher da minha vida e tudo aquilo que eu não sabia que podia ter sido ou feito. Sobrava-me o álcool. Cada vez mais e mais, era ele que se deitava comigo e me fazia levantar da cama com uma enorme ressaca, pronta para mais um dia.

Já era um náufrago, mas não sabia. De tal maneira não sabia que ignorava todas as mãos que chegavam até mim para me tentar salvar. Preferia a solidão da minha jangada, fechando-me em casa para beber a minha autopiedade e gozar os prazeres que teimava serem repetíveis e serem só meus. Se estava lá fora, no mundo real do trabalho, da família e dos amigos, apressava cada vez mais a hora de chegar ao meu porto de abrigo onde continuava a beber sem restrições, mas já com alguma vergonha.

Mas não foi a vergonha que me fez pensar sequer em parar de beber. Foram os tremores que senti pela primeira vez no exacto momento em que eu disse ao meu cérebro “hoje não vais beber”; foram as análises que mostraram inequivocamente que o meu fígado estava a morrer e as tentativas absolutamente fracassadas para reduzir os meus consumos de álcool.

Pensar em parar de beber (quem não?) não é a mesma coisa que precisar de parar de beber. Não tinha ainda essa urgência e andei a saltar timidamente entre psicólogo e psiquiatra, entre terapia e comprimidos, para tentar negociar uma saída que me permitisse acomodar o melhor dos dois mundos: o prazer de viver plenamente e o prazer de beber moderadamente. À falta dos dois, a total falta de clarividência afundou-me ainda mais.

Pedir ajuda

Não foi uma epifania que me levou a pedir ajuda. Foi antes um processo de avanços e recuos que me levou à conversa com uma pessoa que, pela primeira vez na vida, colocou a hipótese de um internamento terapêutico para lidar com o meu problema de álcool.

Por esta altura já eu tinha feito um pequeno e contundente diagnóstico:

“Consigo estar um dia sem beber?” Não.

“Consigo beber metade?” Não.

“Qualquer desculpa é válida para beber mais um copo?” Sim.

“A minha vida está uma merda?” Sim.

“Tenho um problema de alcoolismo?” Sim, mas…

Foi já internada que percebi, e depois admiti, que não há “mas” nesta doença chamada adicção. Com ela não se negoceia, até porque não é de confiança. É para a vida e a única cura é não voltar lá, ao copo, ao chuto, ao cheiro ou ao bafo. “Mas”, nem só uma vez? “Mas”, nunca mais? Sim, nunca mais!

“Mas” eu nunca bebi de manhã; “mas” eu nunca acordei sem saber onde estava; “mas” eu não desaparecia sem dar contas a ninguém; “mas” a minha vida nunca foi um degredo de abusos e violência. “Mas” eu não caí tão fundo. A minha história de vida parecia uma espécie de conto de fadas comparada com as misérias dos outros, sem casa, sem família, sem amigos, sem trabalho nem conta bancária, com cadastro e muitas feridas por sarar. Bravos guerreiros a lutar por uma sobriedade que não lhes dava garantias de virem a recuperar ou conquistar o que quer que fosse. Juntei-me a eles, incondicionalmente. E entreguei-me de corpo, cabeça, alma e coração ao meu tratamento.

Foto
Daniel Rocha (arquivo)

Durante três meses e meio — de manhã, à tarde e à noite —, cumpri um programa de total honestidade, fosse nas terapias individuais como nas de grupo, fosse na escrita ou na leitura, fosse acordada ou a dormir, fosse a rir ou a chorar, a jogar à bola ou a aprender a respirar. Fazer a cama todos os dias ao acordar era um acto terapêutico, que tem tanto de simbólico como de absolutamente imprescindível.

Doeu? Sim, doeu muito. Custou não beber? Não. O que doeu e custou foi entrar na minha cabeça, escancará-la e esgravatar até não haver mais nada para trazer à luz e ao papel. Dia após dia, ia juntando os recortes da minha vida, percebendo que o álcool sempre esteve lá. Qualquer momento dramático, qualquer conquista de felicidade ou qualquer banalidade do dia-a-dia serviram como pretexto para beber. Nem sempre bebia de mais. Mas bebia sempre. Não sabia, nem queria fazer de outra maneira.

Foram quase 40 anos a enganar o meu coração e a baralhar a minha cabeça com sentimentos embriagados, ressacados e desfocados que me fizeram tomar decisões pouco ou nada ponderadas. O que poderia ter sido, o que poderia ter feito e o que poderia não ter perdido sem a minha muleta? Não há resposta. Nunca há resposta para o passado, a não ser que nos queiramos martirizar com sentimentos inúteis de culpa, indignação e vergonha que fazem de nós e de todos os outros pessoas mais feias e más. O que há é o presente, este dia em que acordo com a cabeça limpa e o corpo descansado. Um dia cheio de luz, sombras e zonas cinzentas que enfrento com a curiosidade de uma criança, a ansiedade de uma adolescente e o respeito de uma mulher pela sua doença.

Guardo a certeza de que tomei a decisão mais importante da minha vida ao pedir ajuda para deixar de beber e entrar em lua-de-mel com a minha sobriedade. O futuro é amanhã e promete ser melhor. Vou trabalhar para isso e tenho quem me ajude.

Sugerir correcção
Ler 12 comentários