Recompor o lume

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

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Hoje arrumei a estante.

Livros empilhados há anos pelos cantos
alojando pequenos animais no rés-do-chão
imensas caves larvares de encontro aos tacos

aqui e ali um fio de teia
mas nunca a aranha

não gostam de ler.

Um a um
limpo a lombada
folheio
miro de relance o índice. Este é para aqui!

Coloco-o no lugar exato da prateleira
espaço reservado à eternidade

os outros aguardam
fitam-me com seus olhos pétreos
os mais velhos largando odores
a pó de arroz
a pó
a pétalas amortalhadas
a invernos chuvosos
lumes de lareiras e o ruído da página que se vira.

Aguardam com olhos pétreos
suspensos da decisão

o pensamento universal ficou na prateleira de cima
escorre água pelas vidraças
os manifestos revolucionários logo ao lado
esquerdo nos seus vermelhos fulgentes
na de baixo uma coleção de bichos da national geographic
dorsos em couro tartaruga

as biografias olham-me estarrecidas.
Tantos anos para isto?
Perguntam

as biografias dos que tombaram
para que houvesse amanhã

tombaram mas agora os levanto
entalando-os com uma jarra
para não escorregarem
agora sim, arrumei a revolução.

Recomponho o lume
que soçobrava nas próprias cinzas
e logo uma labareda recomeça


João Habitualmente nasceu no Porto em 1961 e vive em Gaia. Com assídua presença nas noites de poesia do Pinguim nos anos 90, publica cinco livros entre 1995 e 2022. A sua escrita toca também outros géneros, desde o conto à microficção e ao diário. Com a assinatura de Luís Fernandes, foi cronista nos jornais O Comércio do Porto, PÚBLICO e A Página da Educação. É também professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.

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