O abril roxo de um país

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

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“Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”

Sophia de Mello Breyner

1.
Oh uivo dos corpos ecoado por ratazanas
onde um país mergulha além das rosas
no horizonte da envelhecida visitação
dos cravos só raiz de cimento e alcatrão.

*

As palavras alagam-te, ó Portugal de sol
com tufos negros de peixes negros,
os galhos partidos nos olhos da esperança
dos ramos desalentados são um abril roxo.

*

É como se nenhuma manhã inteira e limpa
sob a névoa, como um tal de D. Sebastião,
alguma vez tenha irrompido do seu musgo.

*

Palavras não de sol, palavras de flores secas,
palavras de amor e morte, palavras já só de
esperança ausente e do medo dessas palavras.

2.
Uma espera é sempre o puro vislumbre
de um princípio de espaço primaveril,
neste eflúvio mudo do regaço de abril
só um cravo partido entre a revolução,

*

já, e o abismo da memória de um país.
E mesmo mudando uns frágeis versos
para perto das águas quentes do rio,
como as rosas tristes, estes cravos são

*

hoje como as grandes escamas secas
de um peixe sufocado no sopro do Tejo.
“Fora existe o mundo”, aqui, a luzente

*

brutalidade da inércia de ti, Portugal:
não, não, esta nunca foi a tua madrugada
esperada, a nossa utopia inteira e limpa!


João Rasteiro: Coimbra, 1965. Licenciado em Estudos Lusófonos – UC, integra a Direcção do PEN Clube Português. Publicou 23 livros (Portugal, Espanha e Brasil) e tem poemas traduzidos e publicados em cerca de 20 países. Prémios: Prémio Literário Manuel António Pina, 2010; Prémio César Vallejo, 2020; e Prémio Literário Natália Correia, 2023.

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