Resina e maresia

Essa potência latente na criança era misteriosa e avassaladora, a ideia de que inúmeras vidas possíveis estavam amalgamadas numa unidade indiferenciada, em que apenas uma haveria de ser acto.

Ouça este artigo
00:00
01:57

Foi contemplar caracóis, porque eles a lentificavam, foi ver o mar, porque o mar a tornava infinita, foi sentir a areia nos pés porque isso a lembrava da efemeridade de tudo, encostou-se ao vento, levantando o vestido, porque isso a elevava. A Alexandra olhava para o mar junto ao pinhal do antigo asilo. E assim ficou durante séculos, correspondendo esse tempo, para as pessoas que medem o tempo com relógios, a cerca de cinco minutos, mais século menos século. No pinhal, a Alexandra congregava aqueles domingos todos passados com as meninas desvalidas, domingos de resina e maresia, resultando num aglomerado místico de emoções, com alegrias sobrepostas em camadas, numa unidade de arroubo. A São, que tinha sido fabricada para uma vida a servir — cozer, coser, engomar, limpar o pó, varrer — servia, mas servia a escrever à máquina. Teve uma outra possibilidade de seguir a sua vida, era independente, coisa invulgar para os produtos das fábricas de então. A São regressava à memória da Alexandra mais na forma de Sãozinha, frágil, por cumprir, onde se podiam sonhar inúmeros futuros, do que na versão adulta. Essa potência latente na criança era misteriosa e avassaladora, a ideia de que inúmeras vidas possíveis estavam amalgamadas numa unidade indiferenciada, em que apenas uma haveria de ser acto, apenas uma das Sãozinhas possíveis se concretizaria em São e posteriormente em dona São. A Alexandra tinha, em cinco minutos de pinhal medidos por um relógio, a experiência do desenrolar de uma catadupa de vidas que somavam séculos ou milénios, esta hipótese, aquela hipótese, aquele detalhe, aquela sinuosidade. Para ela todas as vidas possíveis existiam algures e olhar o mar à velocidade de um caracol mostrava-lhe isso tudo mesmo tempo.

Os leitores são a força e a vida do jornal

O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.
Sugerir correcção
Comentar