O cenário parece fantasmagórico, mas a ciência torna-o cada vez mais próximo e realista. Com a electrónica a mostrar-se capaz de substituir faculdades humanas, também o vinho pode estar em vias de vender a alma. A grande questão é, pois, saber se isso é bom ou mau. Será que, sem emoção, sensibilidade e gosto, o vinho pode continuar a ser a mesma coisa?

Depois da introdução pela União Europeia da nova rotulagem com códigos QR que, entre várias outras coisas, vai indicar um prazo e validade para os vinhos, soube-se agora que uma tecnológica americana vai lançar uma aplicação assente em Inteligência Artificial (IA) para substituir os humanos na escolha dos vinhos, enquanto em Itália foi também anunciado um "nariz electrónico" capaz de rastrear as suas características, origem e qualidade.

Espera-se que tais invenções não cheguem a beber ou a comentar. Mas, no ponto em que vão coisas, o melhor será mesmo esperar para ver.

A perspectiva é, assim, a de que a electrónica esteja a tomar conta do consumo. Colocando de lado a emoção, a sensibilidade e o gosto, ameaçando com isso o ancestral processo de descoberta, aprendizagem e escolha. Ou seja, o vinho está prestes a vender a sua alma, desta vez não ao diabo, mas à electrónica.

Desenvolvido por uma investigadora da Universidade Católica de Brescia, Sonia Freddi, o "nariz electrónico" é anunciado como sendo capaz de detectar moléculas e biomarcadores que identificam não só a composição química do vinho, mas também componentes organolépticas e voláteis que remetem para as características específicas das castas e procedência das uvas.

Já baptizada como "VinoVoss", a aplicação de IA foi desenvolvida em Silicone Valley pela BetterAI, uma empresa de tecnologia de dados que anuncia o "mecanismo de pesquisa e recomendação de vinhos mais abrangente e intuitivo do mundo". Apresentado como "sommelier virtual", os seus criadores dizem que está capacitado para responder aos desafios colocados pela natureza subjectiva do sabor, diversidade de regiões, tipos de vinificação e viticultura.

A promessa é de um regalo para consumidores e empresas, permitindo todo o tipo imaginário de pesquisas ou combinações gastronómicas. Há até uma opção "Surprise Me!", sendo também possível "fornecer instruções ou fazer perguntas humanas ao VinoVoss em estilo de conversa", dizem os seus criadores.

E se já nem se pode repugnar a ideia de vermos num futuro próximo o tal "nariz electrónico" a ser decisivo nos processos de classificação e controlo das denominações de origem — sim, é isso mesmo que se propõe — ou o sommelier virtual a ditar as escolhas dos novos consumidores, dificilmente imaginamos que dentro em pouco os nossos filhos ou netos repitam com os vinhos aquilo que já hoje fazem com refrigerantes, iogurtes e afins.

Alguém aceitará que vão à garrafeira digitalizar os códigos QR das garrafas e lancem ao lixo aquelas que possam ultrapassar a indicação de validade? Os vinhos velhos, as jóias da colecção? Ou que uma qualquer máquina passe a ditar-nos as escolhas, ignorando o que é uma mistura de castas, vinhos de tradição, de culto ou pequeno volume, que nunca serão tocados pela electrónica ou envolvência virtual? É claro que não. Impensável!

Mas é seguro pensar também que os consumidores são, e serão cada vez mais, dominados por essa nova lógica. O vinho enfrenta, portanto, um novo mundo. Que é já incontornável e o obriga a vender a alma. E isso leva-nos à questão de saber se isso será bom ou mau. Se, sem a emoção, sensibilidade e gosto, o vinho pode continuar a ser a mesma coisa?

E tal como acontece já com a questão do álcool e as medidas de restrição ao consumo — donde deriva já o código QR —, há quem pense que isso pode ser uma boa notícia. Ajuda a separar as águas. Quanto maior for o cerco ao álcool, mais os consumidores vão apreciar vinho, separando-o do conceito das bebidas alcoólicas.

Também com a electrónica e realidade virtual, há quem acredite já que os vinhos tenderão a separar-se entre os que mantêm a alma e aqueles que a perderam. Que a venderam ao diabo, à lógica do preço da competição comercial e consequente industrialização da produção.

Os vinhos tenderão a dividir-se entre os da indústria, grande produção e preços baixos, por um lado, e os que mantêm a alma, a busca pela diferenciação e pela qualidade. De menor consumo e quantidade, mas mais valorizados. Também porque para estes continuará a prevalecer a sensibilidade, o gosto e a emoção.