Marcelo e o nome neutro foram à escola

Ainda que se considere que a decisão presidencial corresponde a uma cedência aos guerreiros da moral e dos bons costumes , a verdade é que Marcelo Rebelo de Sousa levanta algumas questões pertinentes.

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Thomas Paine e Edmund Burke escreveram longas páginas de antagónica orientação sobre os rumos das sociedades, um acreditando que as revoluções visam criar sempre sociedades absolutamente novas face às sociedades anteriores imperfeitas e injustas, enquanto o segundo acreditava na mudança como um processo ténue de salvaguarda das instituições como património frágil. Esta tensão deu origem e perpetua-se hoje num debate entre progressismo e conservadorismo (clássico). Embora o debate tivesse lugar no século XVIII, ele é paradigmático do tempo em que vivemos. Por mais paradoxal que pareça, se a crise de 2008 das dívidas soberanas e das medidas de austeridade, teve uma dimensão essencialmente material, centrada em questões económicas sobre as Finanças Públicas e o Estado Social, a verdade é que serviu de motor para ressentimentos escondidos por baixo das pedras da calçada.

Acoplada à instabilidade económica, veio a crise da globalização e com ela do multiculturalismo e das democracias liberais. Em consequência, reacenderam-se as fogueiras das “guerras culturais”, colocando em confronto diferentes ressentimentos e ansiedades. De um lado, o ressentimento das minorias que nunca se viram totalmente abarcadas pela promessa liberal e republicana de igualdade efetiva, não obstante o enorme progresso alcançado na reversão da subalternidade formal e material que estiveram devotadas durante séculos; e do outro, um ressentimento de natureza contrária, de uma maioria branca, em especial masculina e heterossexual, geralmente com baixa escolaridade e situação laboral precária, que canaliza a sua angústia para os “outros”. Esta última ansiedade é incentivada por políticos de feição populista, apostados em instrumentalizar a angústia e o descrédito face a um sistema político altamente burocrático e socialmente distante, para ganhos meramente eleitorais.

De um modo geral, é consenso teórico, a partir de evidência muito empíricas, que o conceito de “guerras culturais” remete para um confronto social polarizador e que não visa o estabelecimento de vasos comunicantes, entre blocos arregimentados em torno de uma autoconceção de superioridade moral e de justiça social, a propósito de matérias de natureza imaterial, como seja o direito à interrupção voluntária da gravidez e autodeterminação feminina, o casamento e respetivos direitos das pessoas homossexuais e LGBTQIA+, o lugar e papel da religião na sociedade e, muito recentemente, a questão da “identidade de género”.

A “identidade de género” suscita inúmeras questões científicas e tem sido objeto de longos debates teóricos e de ativa militância. De modo sumário, a “identidade de género” diz respeito à forma como a pessoa se autoperceciona como masculina, feminina, nem masculina nem feminina, ou outra denominação, de modo distinto dos limites clássicos da biologia e do binómio masculino/macho e feminino/fêmea. Com efeito, os Estudos de Género – resultantes da renovação epistemológica pós-modernista das ciências sociais – afirmam que o género e os papéis de género são uma construção social à qual a maioria das pessoas adere através da socialização. Esta corrente de pensamento é dominante nas universidades e verte sobre o ativismo e setores da esquerda progressista pós-material, voltada às questões de identidade.

Por outro lado, temos uma outra corrente de pensamento, fortemente veiculada pela direita radical (e cada vez mais contaminando a direita mainstream) que olha para a questão de género da ótica clássica da “disforia”, apelidando-a de “ideologia de género”, e fazendo-a caber num contexto de uma agenda radical de esquerda – a que dão o nome de «marxismo cultural» – que, no seu entendimento, visa desmantelar as sociedades ocidentais, atacando a família tradicional e os valores cristãos.

É esta a moldura que envolve o veto presidencial dos diplomas relativos ao nome neutro e à autodeterminação de género nas escolas. A decisão motivou críticas fortes dos setores mais progressistas da sociedade. No entanto, ainda que se considere que a decisão presidencial corresponde a uma cedência aos guerreiros da moral e dos bons costumes e um ataque a valores constitucionais como o primado axiológico da dignidade da pessoa humana e os princípios da igualdade e da livre formação da personalidade, a verdade é que Marcelo Rebelo de Sousa levanta algumas questões pertinentes, não obstante no caso das casas de banho e balneários se tenha encontrado, na prática, soluções pacíficas em todo o país, como o uso do balneário/wc dos docentes. Em primeiro lugar, Marcelo levanta a questão da possibilidade de escolha de um nome não neutro com o mesmo grau de legitimidade da opção por um nome neutro. Em segundo lugar, ocorre que a lei na presente formulação permite que uma pessoa que mude de género o possa fazer com efeitos imediatos nos registos matrimoniais e de nascimentos de filhos, sem consulta daqueles e de cônjuge, que são afetados em direitos cada vez mais fundamentais como a identidade biográfica e genética. No entanto, essa questão enfatiza o problema da colisão de direitos, sendo provável que o direito à autodeterminação tenha precedência, mas devendo acautelar-se direitos alheios.

Por fim, suscita-se a questão da autodeterminação de identidade e expressão de género nas escolas, que no entender do presidente, não respeita o papel dos pais, encarregados de educação, representantes legais, associações por estes formadas, nem clarifica as situações em função da idade, tratando de igual modo crianças de 6 anos e adolescentes de 16. Este último aspeto inscreve-se num debate e legislação em vigor em alguns Estados dos Estados Unidos, em que os encarregados de educação/tutores/outras designações, não podem interferir na determinação de género nem mesmo nas terapias e cirurgias de transição, facto que alimenta fortemente o alinhamento com os setores ultraconservadores da sociedade. Parece ser exatamente isto que Marcelo pretende acautelar através da frase, “introduzir mais realismo numa matéria em que de pouco vale afirmar princípios que se chocam, pelo seu geometrismo abstrato, com pessoas, famílias, escolas em vez de as conquistarem para a sua causa, numa escola que tem hoje em Portugal uma natureza cada vez mais multicultural”.

Assim, torna-se evidente que Portugal não tem como escapar dos conteúdos das “guerras culturais” em curso no Ocidente. O que resta saber é se conseguirá evitar uma polarização e um entrincheiramento que levam à materialidade da ideia de “guerra” aqui contida, adotando medidas coerentes, ponderadas e informadas, devidamente inclusivas e dialogantes, permitindo uma transição mais ou menos pacífica nesta matéria.

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