ULS: todo o poder à doença

Se permanecer o preconceito político sobre a promoção da saúde, de aumentar os anos saudáveis, daqui a dez anos continuaremos a discutir os défices do SNS.

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Quando chegou à parte do discurso de consagração da vitória na eleição para secretário-geral do PS, em que devia referir-se ao SNS, o elogio de Pedro Nuno Santos à recente legislação sobre as Unidades Locais de Saúde (ULS) foi tamanho que se referiu a ela por três vezes, querendo transmitir a mensagem de que aquela era a mudança que faltava para que a insatisfação da população com o acesso aos cuidados de saúde terminassem uma vez por todas. Quem o ouviu, terá ficado com a ideia de que, a partir daquele momento, falar das ULS era falar do SNS, o que tinha sido publicado no Diário da República, de 15 de Setembro de 1979, assinado por António Arnaut, dava lugar ao que vinha publicado no Diário da República de 7 de Novembro de 2023, assinado por Manuel Pizarro, fora extinto 0 SNS, passara a existir as ULS e a sua direcção executiva central.

Foi de pouca dura, porém, o entusiasmo do secretário-geral do PS. No final de uma reunião com personalidades do sector, cuja composição é pública, as suas declarações tinham perdido o entusiasmo anterior. Quem o ouviu, deu certamente conta da cautela que colocou nas suas palavras. A reserva apoderara-se dele, quem sabe se por razões que as personalidades lhe transmitiram, quando, ao longo da reunião, o que era uma sigla passou a ser um objecto, descodificado e explicado. O secretário-geral ter considerado, então, que, com ele como primeiro-ministro, as ULS deviam ser monitorizadas e avaliados ao fim de um ano, foi porque o laudatório com que a sigla era divulgada terá sofrido um choque térmico na reunião, e arrefecido.

De facto, toda a expectativa que envolveu o anúncio da criação das ULS se esfumou num abrir e fechar de olhos. Para o mais que acrescenta ao que já existia desde 1999, uma portaria bastava porque o essencial estava feito vai para 25 anos. Um decreto-lei que se resume a aspectos burocrático-administrativos e normas revogatórias não passa de uma manifestação de extravagância legislativa. Eram desnecessários 21 artigos para incluir oito normas revogatórias, aditamentos ou alterações. Precisar de quase 40% de um decreto-lei para isto, é um desperdício mental.

Porém, o que mais importa neste diploma é a total ausência de preocupações com a saúde da população. Nos primórdios dos programas de garantia da qualidade, considerava-se que com uma boa estrutura se iriam obter bons resultados. Avis Donabedian, nos anos 80 do século passado, veio demonstrar-nos que entre a estrutura e os resultados faltava uma peça, o processo: o quê, o quando, o quanto, o como, e o porquê do que se fazia nos serviços de saúde. É precisamente no quê que reside o busílis das ULS.

Tal como estão enunciadas, as ULS são organizações orientadas para o tratamento da doença, é esse o seu quê. Mas, no seu valor mais baixo, o ratio saúde/doença é de 2, 3 e ocorreu em 2015, ainda estávamos sob o efeito das medidas de austeridade. Ora este ratio não está representado nas ULS, falta-lhe o numerador, a saúde. No entanto, ele está na Lei de Bases da Saúde, na sua Base 9, e no art. 13.º do Estatuto do SNS – ​os Sistemas Locais de Saúde. São eles que proporcionam uma visão holística da saúde, que é o mesmo que dizer, numerador e denominador daquele ratio.

Além dos hospitais e dos ACES, «os SLS integram, por inerência, os estabelecimentos e serviços do SNS e demais instituições públicas com intervenção direta ou indireta na saúde, designadamente nas áreas da segurança social, da proteção civil e da educação, assim como os municípios, podendo ainda integrar outras instituições que operam no sector», está escrito no artigo, mas sonegado à proclamada revolução. Aproveitando o momento em que Marta Temido transmitia o expediente a Manuel Pizarro, nesses breves instantes de terra de ninguém, alguém aproveitou para "apagar" o artigo 13.º do Estatuto do SNS.

Enquanto permanecer o preconceito político sobre a promoção da saúde, de aumentar os anos saudáveis, que embora multifactorial carece da presença do sector da saúde, daqui a dez anos estaremos a continuar a discussão sobre os défices do SNS, que começaram há mais de 20 anos. Do que se trata, agora que o secretário-geral do PS tem uma noção da capacidade das ULS para potenciar a medicalização da população, é, caso venha a ser primeiro-ministro, de não perder um ano, e mandar alterar substancialmente o decreto-lei 102/2023.

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