Se um vinho para ganhar notoriedade no mercado precisa sempre de uma boa história, então o francês Loïc Pasquet encontrou a narrativa perfeita. Prometendo recuperar o sabor dos vinhos do século XIX, antes da praga da filoxera que dizimou as vinhas nas Europa, o produtor da região de Bordéus conseguiu não só uma enorme visibilidade para os seus vinhos, como colar-lhes também o rótulo de "vinho mais caro do mundo", com o preço estratosférico de 30 mil euros cada garrafa.

Não sendo novidade – Pasquet já andou por cá em 2019 a apresentar os seus vinhos – a estratégia parece saltar agora para um novo patamar. Esta semana foi apresentado um documentário onde o produtor do Liber Pater, assim se chama o seu vinho, passa a apresentado como uma espécie de messias e herói que quer salvar a pureza natural do vinho e por isso é perseguido e obstaculizado.

Já disponível no iTunes (acesso pago), o filme realizado por Klaas de Jong, com cerca de 50 minutos, escolhe para título precisamente a ideia forte do produtor – The Most Expensive Wine in World – e as afirmações de Pasquet que são oferecidas no pequeno trailer de apresentação, com pouco mais de dois minutos, deixam escassa margem para dúvidas.

"O vinho é espiritual porque nos dá a noção de eternidade" e "tenho como missão salvar o sabor dos vinhos de Bordéus". E é "porque quero salvar a herança de Bordéus, que o tribunal e a INAO [Instituto Nacional da Origem e da Qualidade, do Ministério da Agricultura francês] me condenaram a seis meses de prisão", diz, diabolizando todos os outros vinhos e os seus produtores, que "mentem aos consumidores, porque não fazem vinhos como os de antes da filoxera, fazem o vinho como uma sopa".

Ele só, como autor e intérprete da natureza original contra o mundo que após a filoxera adulterou e manchou a pureza do vinho com o recurso à enxertia. Quanto aos estratosféricos 30 mil euros, "a questão não é o preço de uma garrafa, a questão é saber quanto se está disposto a pagar para jantar com Napoleão", uma vez que é a recuperação do sabor desses tempos aquilo que diferencia os seus vinhos.

Não que os vinhos não sejam realmente extraordinários, distintos e de enorme qualidade, ou que o preço seja sempre sobretudo uma questão de mercado. Mas daí à narrativa messiânica e à teoria do único vinho puro autêntico vai um mundo de distância. Acredita quem quer, claro! E se por cá até já vimos vender enlatado ar santificado de Fátima, não há que espantar. A diferença é que cada latinha custava apenas dois ou três euros.

Mas que têm, então, os vinhos de Loïc Pasquet que não têm todos os outros? A narrativa da autenticidade, claro, mas essa resulta do facto de não usar enxertia na plantação das videiras. Todas as suas vinhas são de pé-franco, o que significa que não usa os porta-enxertos americanos protectores contra a filoxera. Outra estratégia diferenciadora foi o recurso a castas pré-filoxéricas que tinham sido abandonadas.

Uma exclusividade contra a corrente – e contra as regras, daí os processos - na região de Bordéus, mas que entre nós nem seria assim tão diferenciadora. Em Portugal são às centenas as castas pré-filoxéricas e só na Estação Vitivinícola Nacional, em Dois Portos, existem mais de 300. Também nas regiões onde se preservaram vinhas velhas há casos de parcelas que sobreviveram à devastação da doença. E belíssimos vinhos que a partir delas vão também sendo feitos.

Temos também casos de vinhos provenientes de vinhas em pé-franco, sem dúvida extraordinários e diferenciados, como são os casos das vinhas do Ribeirinho e das Valadas, de Luís Pato, na Bairrada, mas também das vinhas de Colares, onde a filoxera nunca penetrou. É certo que nos faltam Messias e heróis, mas seria interessante que algum dia se pudessem provar estes vinhos em paralelo com os Liber Pater. Talvez as diferenças mais significativas acabassem por ser mesmo a que se verificam nos preços.