O que falta na saúde: decisões!

Se um centro comercial encerra às 24h, é estranho verificar que, em regra, o centro de saúde só esteja aberto no horário em que as crianças estão na escola e os adultos a trabalhar.

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O sistema de saúde, na sua globalidade, e o Serviço Nacional de Saúde em particular, estão no centro da atualidade noticiosa. A cada minuto, ouvimos novas notícias, umas quantas reportagens televisivas às portas dos serviços de urgência, e depois, o discurso político sobre os problemas no SNS. Recorrendo ao rigor científico que se usa em saúde, nem sequer podemos falar em diagnóstico. O que assistimos todos os dias nos media, é aquilo que a enfermagem designa avaliação inicial, a fase prévia à formulação diagnóstica. São apenas enunciados os problemas, com particular gravidade nesta altura do ano, em que o frio faz agravar um conjunto de doenças crónicas e faz emergir as infeções respiratórias.

É natural que esta realidade difícil para os serviços de saúde seja notícia. Mas a questão é pensar o que a notícia sobre a situação caótica das urgências hospitalares pode ajudar, quer na clarificação rigorosa do diagnóstico da situação nacional, quer nas medidas políticas a adotar para resolver ou minimizar o diagnóstico feito.

Voltando mais uma vez ao raciocínio científico, tão caro à saúde, há que ser claro no diagnóstico. Só temos gripe este ano? Só este ano temos pessoas idosas com doenças crónicas? Só este ano temos o caos instalado nas urgências hospitalares? Não! É assim todos os anos no inverno, sendo que nas restantes estações do ano o que muda não é o problema do excesso de pessoas doentes nas urgências; apenas mudam as doenças que as pessoas têm, em função das condições ambientais específicas. Temos infeções respiratórias no inverno e desidratações no verão. Pessoas idosas com doenças crónicas descompensadas temos todo o ano.

Perante o mais que validado diagnóstico do recurso excessivo aos serviços de urgência, qual a resposta das políticas de saúde? Estão todas pensadas, planeadas e inscritas na lei. Formação para a saúde dos cidadãos, que lhes forneça uma adequada literacia em saúde, para que possam adotar comportamentos saudáveis. É claro que tudo deve começar no infantário, mas em todo o percurso escolar, incluindo o ensino superior, é fundamental esta formação. As crianças aprendem o que lhes ensinamos e os jovens precisam de informação adequada para construírem a sua autonomia, pelo que a escola e a universidade são ambientes fundamentais na formação em saúde. Na vida adulta, apesar do acesso fácil a informação sobre saúde, também é necessário que essa informação se transforme em conhecimento, para que este dê lugar a comportamentos saudáveis, pelo que a promoção da literacia em saúde nos locais onde os adultos se encontram – locais de trabalho, sobretudo – é essencial. Na população idosa, parece tudo mais simples, na perspetiva teórica: as pessoas têm mais disponibilidade, muitas encontram-se em instituições, pelo que o seu acompanhamento em matéria de saúde se revela de fácil planeamento.

Estas são as políticas de saúde consagradas na Constituição e na lei. E claro, na avultada regulamentação da Direção-Geral da Saúde.

Portanto, para resolver o problema do excessivo recurso aos serviços de urgência, é necessário, em primeiro lugar, agir a priori, na formação de cidadania sobre comportamentos de promoção da saúde e de atitudes perante a doença. Em segundo lugar, é necessário que, para além da educação que suporta a literacia em saúde, existam recursos de cuidados de proximidade, para que a pessoa não tenha como única alternativa, o que deveria ser o de fim de linha: o serviço de urgência hospitalar.

O que acabo de descrever é matéria de qualquer manual de ciência ou de política de saúde. Nada de novo.

Então, se temos avaliação inicial feita, diagnóstico formulado, e medidas de resolução identificadas, o que nos falta? Falta, o que habitualmente escasseia na esfera da nossa vida pessoal: decisões. Quase sempre sabemos que o exercício físico melhora a nossa saúde, mas falta-nos a capacidade de decidir começar a fazer caminhadas.

Na vida privada, podemos encontrar razões para esta decisão de não decidir; contudo, na vida política, quando alguém assume por dever a responsabilidade de decidir por todos, tudo muda. Não é aceitável que os decisores políticos participem apenas na notícia; é-lhes exigido que tomem decisões, que as façam aplicar, e usem o tempo noticioso para nos prestar contas dos seus resultados. A política faz-se da tomada de decisão, da sua implementação para resolver os problemas das pessoas e de uma rigorosa avaliação dos resultados, positivos e negativos, que produziram.

Na saúde, só falta isso: tomar as decisões que o conhecimento científico tem produzido e que a Constituição e a lei determinam. O enfoque do Serviço Nacional de Saúde tem de deixar, definitivamente, de ser no tratamento da doença, no exame complementar de diagnóstico e na resposta hospitalar. A doença tem de ser o mais possível evitada, o exame complementar de diagnóstico tem de ser reservado para quando uma experiente avaliação clínica não é suficiente, e o hospital tem de ser a porta de saída do sistema e não a porta de entrada.

O centro de saúde, independentemente da sua organização no sistema, tem de ser o que está previsto ser: um local de enfoque na saúde. Um local de promoção da educação para a saúde das pessoas da sua área comunitária, nas escolas, nas empresas, nas prisões, no espaço público; um local de atendimento individual e familiar para vigilância continuada de saúde que previna sobretudo as doenças que resultam de comportamentos não saudáveis; um local de acompanhamento das crianças, dos jovens, dos pais, das pessoas com doença crónica, das pessoas idosas e das pessoas em fim de vida, de acordo com as suas necessidades específicas de saúde. Um local de primeira abordagem da pessoa doente e de encaminhamento para o hospital. Um local que se adapte às reais necessidades da comunidade que serve, no horário adequado a estas.

Se um centro comercial encerra às 24h, porque as pessoas que trabalham precisam fazer compras depois de deixar o local de trabalho, é estranho verificar que, via de regra, o centro de saúde só está aberto no horário em que as crianças estão na escola e os adultos a trabalhar. Se o país investe tanto na formação de enfermeiros de família, é estranho verificar que apenas se fala na necessidade de médicos de família, como se o trabalho em complementaridade dos diferentes profissionais da saúde não fosse uma realidade capaz de responder às necessidades de atendimento assistencial das pessoas.

Portanto, faltam-nos recursos no SNS? Acredito que sim. Mas faltam sobretudo decisões para uma adequada gestão dos recursos existentes.

E mesmo, no imediato, perante o caos que se verifica nas urgências hospitalares, também faltam mais decisões do que recursos. Os planos de catástrofe existem em cada hospital. O que falta não são planos nem recursos para implementá-los. Falta o mais difícil: consciencializar que 18 horas na sala de espera de um serviço de urgência, ou a permanência de uma pessoa idosa três dias e três noites sentada num cadeirão, é, indubitavelmente, uma situação de catástrofe. Que precisa de decisões de implementação dos planos de catástrofe para resolver o imediato.

A desumanização do cuidado e o cansaço dos profissionais de saúde é como a dor: apenas se aceita a que é do outro!

Passemos então da notícia e do comentário à ação! Temos um SNS e um sistema de saúde dos melhores da Europa e do mundo. Temos os melhores profissionais de saúde! Temos uma investigação de topo, quer nas ciências da saúde, quer na economia, na sociologia e na política da saúde. É tempo de tomarmos decisões! Sérias! Cientificamente validadas!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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